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A ALQUIMIA ESPIRITUAL

19.00

Informação adicional

Peso330 g
ISBN

978-989-8691-26-2

Ano

2015

Edição

1

Idioma

Formato

145×210

Encadernação

Cartonada

N. Pág.

212

Colecção

Partilhe:

«Por que é que a maior parte dos humanos deixa as suas tendências instintivas desenvolverem-se livremente, sem que as suas faculdades superiores tenham uma palavra a dizer, para as controlarem, para as orientarem?… Ou, então, eles atiram- se a elas para as aniquilar, como se elas fossem inimigas da sua evolução. Pois bem, em ambos os casos eles cometem um erro, pois introduzem uma divisão entre o alto e o baixo. Ora, a Inteligência Cósmica previu que as faculdades superiores obteriam as suas energias nas funções inferiores; com efeito, estas são como raízes indispensáveis, para que a árvore que o homem é possa extrair da sua “terra” as substâncias que ele transformará para dar flores e frutos.
Como é que, na árvore, se processa a transformação da seiva bruta, absorvida pelas raízes, em seiva elaborada?… É nas folhas que se opera esta transformação, graças à luz do sol…
Do mesmo modo, graças à luz do sol espiritual, nós podemos transformar em nós a seiva bruta, as nossas tendências instintivas, em seiva elaborada, que irá alimentar as flores e os frutos da nossa alma e do nosso espírito. Será assim que nos tornaremos verdadeiros alquimistas.»

Omraam Mikhaël Aïvanhov

IV
O administrador infiel
(personalidade e individualidade)

«E continuou Jesus a dizer aos seus discípulos: “Havia um
homem rico, que tinha um administrador. Este foi acusado perante
ele de lhe defraudar os haveres. Mandou, pois, chamá-lo e disse-
-lhe: ‘O que é isto que ando a ouvir a teu respeito? Dá-me já conta
da tua administração, pois não podes continuar a administrar os
meus bens.’ Disse então o administrador para consigo: ‘O que é
que eu hei de fazer, uma vez que o meu amo me vai retirar a administração
dos seus bens? Trabalhar a terra, não posso, e tenho
vergonha de mendigar. Já sei o que vou fazer para que alguém me
receba em casa, quando for demitido.’ E, chamando um após outro
os devedores do seu senhor, perguntou ao primeiro: ‘Quanto deves
ao meu amo?’ ‘Cem talhas de azeite’, respondeu ele. ‘Toma lá os
teus papéis, senta-te aí depressa e escreve cinquenta’, disse-lhe o
administrador. ‘E tu, quanto deves?’ ‘Cem alqueires de trigo’, respondeu
ele. ‘Toma lá os teus papéis e escreve oitenta.’ E o senhor
louvou o administrador infiel, considerando que ele tinha procedido
com prudência.” É que os filhos deste mundo são mais prudentes
relativamente aos seus semelhantes do que os filhos da luz.
Também eu vos digo: granjeai amigos com as riquezas injustas,
para que, quando estas vierem a faltar-vos, sejais recebidos nos
tabernáculos eternos. Quem é honesto nas coisas mínimas, também
o é nas grandes; e quem é desonesto nas coisas mínimas, também o
é nas grandes. Se não administrardes fielmente as riquezas injustas,
quem vos confiará as verdadeiras?
E, se não administrardes fielmente os bens alheios, quem vos
entregará o que é vosso? Nenhum servo pode servir dois senhores:
ou terá ódio a um e amor ao outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará
o outro. Não podeis servir Deus e Mammon.»

São Lucas, 16: 1-13

Esta parábola é muito difícil de interpretar e, até hoje, não li
nenhum livro, não ouvi nenhum conferencista nem nenhum religioso
que tenha dado uma explicação verídica para ela. Aparentemente,
há tantas contradições neste texto que ele parece incompreensível.
Contudo, já ireis constatar que ele contém muitas verdades profundas
e essenciais.
Jesus cita o exemplo de um administrador infiel para com o seu
amo e aconselha-nos a imitá-lo: «Também eu vos digo: granjeai
amigos com as riquezas injustas…» E, depois, acrescenta: «Se não
administrardes fielmente as riquezas injustas, quem vos confiará
os verdadeiros bens?» Portanto, Jesus encoraja, ao mesmo tempo,
a fidelidade e a infidelidade, ou a desonestidade, o que é verdadeiramente
estranho.
Se quiserdes compreender o sentido deste texto, precisais de ser
muito pacientes, esquecer por uns momentos a parábola e começar
por compreender diversas coisas que esclarecerão o seu sentido.
Numa conferência anterior, eu dei-vos um esquema astrológico;
se souberdes utilizá-lo, podereis interpretar numerosas passagens
obscuras dos Evangelhos e dos Livros Sagrados, porque ele não é
uma construção artificial, representa uma realidade milenar. Vou
mostrar-vos de novo o esquema.
Podeis constatar que há uma linha horizontal a dividi-lo em duas
partes.
Há milhares de anos que os homens tentam estudar-se, para
compreender a estrutura do seu ser e, para tal, têm imaginado vários
modos de divisão. Uns adotaram o 2 (o espírito e a matéria, o alto e
o baixo, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo). Outros
adotaram o 3 (pensamento, sentimento e vontade, o que corresponde
também à divisão dos cristãos: corpo, alma e espírito). Os alquimistas
dividem o homem em 4, segundo os quatro elementos. Os
astrólogos dividem-no em 12, de acordo com as doze constelações.
Os hindus e os teósofos dividem-no em 7 corpos: físico, etérico,

(lamentamos não poder inserir o esquema representado neste local, representando ao natureza superior e a natureza inferior)

astral, mental, causal, búdico e átmico. Os cabalistas dividem-no
em 3, em 4, em 9 ou em 10… Finalmente, para alguns, o homem
é uma unidade indivisível. Qualquer que seja o ponto de vista que
se adote, ele é sempre verdadeiro; pode-se escolher o ângulo pelo
qual se olha as coisas.
Foquemo-nos na explicação mais simples e digamos que o ser
humano é uma unidade perfeita, mas que esta unidade está polarizada.
Sim, pois o ser humano é composto por duas naturezas: a natureza
inferior e a natureza superior, que têm as mesmas faculdades de
pensar, de sentir e de agir, mas em sentidos opostos. Para tomarmos
consciência desta oposição, temos de observar-nos e, infelizmente, a maioria dos humanos mistura tudo: para eles, os pensamentos e os
sentimentos inferiores são da mesma natureza que os pensamentos
e os sentimentos superiores; eles não sabem distingui-los uns dos
outros. Ao passo que, para os Iniciados, esta distinção é absolutamente
clara, ainda que, na realidade, não se consiga encontrar
o limite absoluto que separa estas duas naturezas, porque uma se
funde na outra, do mesmo modo que as cores do espectro se distinguem
claramente de longe, mas, se estivermos perto, não podemos
discernir a linha de separação.
O esquema que vos dei apresenta, em primeiro lugar, uma divisão
em dois: a natureza inferior e a natureza superior, e cada uma
delas apresenta, por sua vez, três divisões, que correspondem às
três funções do homem: o intelecto, o coração e a vontade, isto é, o
pensamento, o sentimento e a ação.
Segundo o esquema, os diferentes corpos que compõem o
homem são, pois:
– para a divisão inferior: os corpos físico, astral e mental;
– para a divisão superior: os corpos causal, búdico e átmico.
Mas podemos dar-lhe, igualmente, outras denominações:
– para a divisão inferior: corpo físico, coração e intelecto;
– para a divisão superior: intelecto superior (ou razão), coração
superior (ou alma) e espírito.
Talvez vos interrogueis acerca do significado dos três grandes
círculos concêntricos do esquema. Eles mostram a ligação que
existe entre os corpos superiores e os corpos inferiores. O corpo
átmico, que corresponde ao espírito e que é a força, a vontade e
o poder divinos, está ligado ao corpo físico. O corpo búdico, que
representa a alma, com todos os sentimentos mais elevados de amor,
de sacrifício e de bondade, está ligado ao corpo astral. O corpo causal,
veículo dos pensamentos mais amplos e mais luminosos, está
ligado ao corpo mental.
Este conjunto de ligações pode explicar-vos um grande número
de problemas na vida e esclarecer muitas passagens dos Livros
Sagrados. Assim, o reino dos minerais e dos cristais esconde os
segredos mais profundos do mundo divino. Por isso, os alquimistas
estavam no bom caminho, quando procuravam no mundo mineral os elementos mais eficazes e poderosos para preparar a pedra filosofal
e obter a imortalidade. Os cristais são o símbolo da perfeição
absoluta do mundo divino. Mas falaremos destas ligações numa
outra ocasião.
Já vos expliquei que os doze signos do zodíaco estão distribuídos
segundo os 4 elementos (terra, água, ar e fogo), 3 signos para
cada elemento, do seguinte modo:

(voltamos a não poder inserir o esquema)

Como eu já vos disse (esquema da p. 69), o corpo físico está sob
as influências da Lua e Saturno, e o corpo átmico sob as do
Sol e de Saturno . Os corpos astral e búdico são influenciados
por Vénus e Marte , e os corpos causal e mental por Mercúrio
e Júpiter . As formas dos corpos inferiores estão todas em
signos de terra e os seus duplos em signos de água, ao passo que
as formas dos corpos superiores estão em signos de ar e os seus
duplos em signos de fogo. A parte inferior do esquema corresponde,
portanto, ao grupo terra-água, e a parte superior ao grupo ar-fogo.
Esta disposição não é arbitrária, existe em toda a criação, e é deste
modo que o nosso planeta está construído: primeiro, o solo, a terra,
e por cima a água, que cobre uma parte dela e a penetra; depois, por
cima deste grupo terra-água, o grupo ar-fogo; o fogo, isto é, a luz,
os raios solares que penetram no ar como a água penetra na terra.
Em astrologia, é dada uma especial importância aos dois luminares
– o sol e a lua –, pois a nossa terra está particularmente colocada
sob a sua influência. Ora é a do sol que predomina, ora é a da lua.
O sol, a lua e a terra representam a divisão ternária: espírito, alma
e corpo.
O sol simboliza tudo o que é estável, imutável – a natureza superior;
a lua simboliza o que é passageiro, variável – a natureza inferior.
As paixões, os pensamentos vulgares que levam os homens
a enganarem-se e a roubarem-se uns aos outros, as agitações, as
inquietações, a vaidade, a sede da glória, tudo o que é interesseiro,
egoísta, e que só tem em vista as satisfações materiais, também
faz parte da natureza inferior. A natureza superior, pelo contrário, é
formada por todas as tendências para o bem: o desejo de justiça, de
verdade, o desejo de aprender, a necessidade de ajudar os outros, de
se sacrificar, de ser generoso e pleno de amor.
O homem no qual a natureza inferior é dominante alimenta pensamentos
e sentimentos egocêntricos, que têm como único objetivo
a sua própria satisfação. Nele, a natureza superior está como que
oculta e encontra-se limitada nas suas manifestações. Pelo contrário,
nos seres cheios de devoção, que respeitam os outros seres e têm
o alto ideal de se aperfeiçoar no domínio das virtudes, a natureza
inferior enfraquece e a natureza superior reforça-se.1
Para simplificar as coisas, chamaremos à natureza superior
“individualidade” e, à natureza inferior, “personalidade”. Já vos
explicarei porquê. Encontrareis na arte, na literatura, na pintura, etc.,
numerosas representações da personalidade e da individualidade.
Dai uma olhadela pelos desenhos de Daumier e tereis uma ideia das
fisionomias hediondas que certas personalidades podem adquirir.
A personalidade quer mostrar-se à viva força e, para isso, está
disposta a empregar todos os meios, agradáveis ou desagradáveis;
cobre-se de cores gritantes, de roupas excêntricas, e faz-se notar
por um riso grotesco, por gestos afetados. Quer mostrar-se sempre
mais do que é, como um peru que enfuna as suas penas para ficar
com mais volume. Mas, acima de tudo, ela é extremamente mutável
e passa de um estado a outro com uma facilidade incrível: alegre
e depois triste, otimista e depois desanimada, simpática e depois
maldosa. Ela receia a fome, a pobreza, a morte, e faz cálculos incríveis
para assegurar a sua alimentação e toda a espécie de posses.
Mas não consegue guardar nada, porque é um abismo sem fundo,
onde tudo se perde. A personalidade tem apenas um propósito: o
interesse; e por ele é capaz de mudar de filosofia, de religião ou de
opiniões políticas com a rapidez que as circunstâncias requerem.
A individualidade age de um modo oposto ao da personalidade.
Não tem pressa de se mostrar, nunca lança poeira para os olhos dos
outros e não grita para ser notada, pois tem a certeza de que será
descoberta quando for necessário. Para isso, conta apenas com as
suas qualidades e com o seu trabalho. Tem em si uma convicção
estável, inabalável, uma fé e uma esperança constantes e firmes. Ela
não varia, o seu ponto de vista mantém-se imutável.
A personalidade é representada pela metade inferior do esquema
e a individualidade pela metade superior. A individualidade manifesta-
se pelas virtudes mais elevadas: a sabedoria (no plano causal),
o amor (no plano búdico) e a verdade (no plano átmico). Cada
virtude tem um poder particular: a sabedoria traz-nos a luz, o saber
real, baseado nos princípios eternos; o amor dá-nos a vida, a felicidade;
e a verdade abre-nos as portas e liberta-nos. A verdade pode
dar-nos a felicidade e a vida, mas só por intermédio do amor. Por si
própria, ela não pode proporcioná-los, pelo contrário, é frequente
ela começar por trazer sofrimentos e tormentos. É por isso que muitos
homens recusam ver a verdade, temem-na. A sabedoria pode
libertar-nos e tornar-nos felizes, mas por intermédio da verdade e
do amor. A sabedoria não pode libertar-nos nem tornar-nos felizes,
por vezes até acontece o contrário, ela torna-nos melancólicos e
pessimistas. Quanto ao amor, esse não pode libertar nem iluminar,
proporciona unicamente a dilatação, a alegria e a vida. Mas, com
o amor, a sabedoria e a verdade reunidos, surgem a plenitude, as
bênçãos do Céu, a perfeição do ser.2
Infelizmente, os humanos confiam demasiado na sua personalidade
e quase todos procuram a liberdade, a felicidade e a luz no lado inferior da sua natureza. Não, com a personalidade apenas se
encontra a fraqueza no plano físico, os desgostos no plano astral e
os erros no plano mental. Isto é tudo o que a personalidade humana
pode dar, a despeito das suas aparências sedutoras. Ela assemelha-
-se a uma bola de sabão: a bola de sabão eleva-se no ar, cintilante,
irisada, mas rebenta muito depressa.

Debrucemo-nos agora sobre os termos “personalidade” e
“individualidade”. É muito frequente usar-se um e outro indiferentemente,
e diz-se que um homem tem uma forte personalidade
ou, então, uma forte individualidade, para exprimir exatamente a
mesma coisa. Talvez encontreis outras definições nos dicionários,
mas, para o que eu pretendo explicar-vos relativamente à natureza
superior e à natureza inferior no homem, dir-vos-ei que, para definir
o termo “personalidade”, se pode partir da etimologia da palavra
latina persona. Persona era a máscara que o ator romano punha
no teatro para representar, pois, como sabeis, na Antiguidade os
atores usavam uma máscara. Imaginai, então, um ator: um dia, ele
representa o papel de um homem sensato, de um sábio; noutro dia,
o de um criminoso, de um traidor ou de um sedutor. Ele é sucessivamente
Cyrano de Bergerac, Gribouille, Alexandre Bórgia, São Luís.
Estas diferentes máscaras, estes diferentes papéis, representam a
personalidade. Quanto à individualidade, é o artista que permanece
sempre o mesmo, ao longo de todos esses papéis. Este exemplo
do ator mostra-nos que a personalidade é mortal, efémera; do
mesmo modo que o papel termina quando a representação acaba,
ela dura somente uma encarnação. Na próxima encarnação, surge
uma outra personalidade. Ao longo destas mudanças de personalidade,
a individualidade não varia, é sempre a mesma, embora vá
progredindo com o passar dos milénios, acumulando as experiências
vividas através da personalidade. Ela manifesta-se ora num
papel, ora noutro, revestindo-se de personalidades diferentes, em
cada encarnação.
Tudo isto é muito fácil de entender e permite-nos perceber que
uma pessoa que é rica, saudável e bela nesta existência, na próxima
encarnação pode voltar pobre, fraca e sem beleza, se agora não fizer
nenhum esforço espiritual. Pelo contrário, aquele que trabalha com o seu espírito, a sua inteligência divina, a sua alma (cumprindo o
papel que lhe foi imposto nesta encarnação), adquire qualidades,
virtudes e riquezas que permanecerão na sua individualidade e lhe
pertencerão eternamente. Quando deixar de representar o papel da
sua personalidade, partirá com essa bagagem espiritual e, depois,
viajará pelo universo com esses bens, que são verdadeiros. Ninguém
poderá retirar-lhos. Exatamente como o ator que, tirando partido dos
seus papéis para se aperfeiçoar e para se desenvolver, abandona o
palco com ideias mais vastas, assim o homem deve sair do palco
terrestre enriquecido pela sua experiência.
O que faz dos seus bens alguém que, ao longo da sua existência,
acumula apenas riquezas materiais? Tem de abandoná-los quando
deixa o seu papel terrestre – é esta a lei – e encontra-se, subitamente,
pobre, desprovido de tudo. A sua individualidade, como partiu sem
bagagens – quer dizer, sem nenhuma aquisição espiritual –, voltará
à terra para dar continuidade a esse desfecho e terá de encarnar-se
numa personalidade privada de todos os bens, pois não os mereceu,
e a pessoa será obrigada a trabalhar imenso para os adquirir.
Não quero com isto dizer que se deve renunciar à posse de objetos
materiais, de roupas, de propriedades… Não. Todas essas coisas
são necessárias na terra, tal como o cenário e os trajes são indispensáveis
ao ator, mas não mais do que isso. Nós fomos enviados
ao mundo exatamente como o administrador da parábola entrou ao
serviço do seu amo. Não podemos abandonar esse amo, mas ele
pode despedir-nos, se nos tornarmos maus servidores. Quando o
homem morre, é porque foi despedido.
A personalidade assemelha-se a quê? Por certo, já vistes pavões.
Toda a gente gosta de os observar e os admira: eles abrem a cauda,
viram-se para todos os lados, para se mostrarem bem, e sente-se
que eles têm orgulho nas suas penas. Vós achai-los magníficos e
aproximais-vos. Então, eles querem fazer-vos ouvir a sua bela voz,
mas dão gritos tão horríveis que vós ficais assustados e a vossa opinião
acerca deles muda imediatamente. A personalidade manifesta-
-se completamente no pavão. O homem que, em vez de trabalhar
para adquirir a sabedoria, o amor e a verdade, só pensa em exibir-se,
em pavonear-se em frente dos outros, em ostentar a sua riqueza, a sua inteligência e o seu poder, é como um pavão que abre a cauda
em leque e que grita com uma voz estridente: «Olhem para mim!
Não há outro como eu no mundo.» Ao passo que o rouxinol, esse
não se exibe. Ele não tem vestes reluzentes, mas possui uma voz!
Não é grande, nem bonito, no entanto, quando canta, os poetas e os
enamorados vêm escutá-lo. O rouxinol manifesta-se de uma forma
diferente do pavão; ele é um símbolo da individualidade.
A personalidade e a individualidade manifestam-se sob muitas
outras formas! Um homem que anda sempre a queixar-se de ter sido
posto em más condições, que são um obstáculo à sua evolução, e
que considera que os progressos feitos pelos outros só se devem às
boas circunstâncias que eles encontraram nas suas vidas, é a imagem
da personalidade. Pelo contrário, um outro homem que nunca
se queixa de nada, mesmo que tenha de viver nas piores condições,
e que trabalha para desenvolver as suas qualidades, é a imagem da
individualidade.
Usemos um outro exemplo, agora no reino vegetal. Observai
uma palmeira. Ela cresce nas areias do deserto, onde o sol queima
atrozmente, a terra é pouca e a água é extremamente rara, contudo
ela diz: «Eis o que eu posso fazer nas piores condições», e oferece
as suas tâmaras, que são mais açucaradas e doces do que qualquer
outro fruto. A palmeira é uma verdadeira alquimista: transforma
a areia em açúcar. Pelo contrário, um outra árvore, plantada num
solo muito rico, bem regado, e onde o clima é favorável, não consegue
passar de uma ameixeira brava com frutos amargos. Há muitos
homens que são como a ameixeira brava: vivem em condições
favoráveis, mas os seus frutos são amargos e eles andam sempre
a queixar-se. Isto prova que eles ignoram as riquezas que existem
neles e a maneira como podem utilizá-las.
A personalidade está sempre a queixar-se. Ela proclama por toda
a parte que, se estivesse alojada num palácio, saberia fazer milagres.
Mas a experiência prova que, nas regiões mais favorecidas, existem
ameixeiras bravas e muitas outras árvores cujos frutos são insípidos,
ácidos ou amargos.
Vou agora contar-vos uma história. Numa aldeia da Bulgária,
os camponeses estavam todos a cantar e a dançar, martelando alegremente o chão com as suas botas. Estava lá um jovem camponês
que não podia dançar, porque não tinha botas. Mas, a dada altura,
ficou com tanta vontade de ir também dançar, que pediu a um amigo
que lhe emprestasse as dele. Feliz por poder, finalmente, entrar na
roda, pôs-se a bater com os pés no solo com todo o vigor. Vendo
isto, o amigo que lhe tinha emprestado as botas gritou-lhe: «Eh,
não batas com tanta força! Assim, vais estragar-me as botas!» O
dançarino sentiu-se envergonhado por toda a gente ter ficado a saber
que ele tivera de pedir umas botas emprestadas. Um outro amigo,
vendo o seu embaraço, disse-lhe baixinho: «Tira essas botas. Eu vou
emprestar-te um par com o qual poderás dançar à vontade.» Então,
ele mudou de botas e voltou a entrar na roda. Mal tinha entrado,
o outro gritou-lhe: «Vá! Bate à vontade!… Se estragares essas, eu
empresto-te outro par.» O pobre camponês ficou corado de vergonha,
pois, pela segunda vez, todos tomavam conhecimento de que
ele não tinha botas.
Eis mais um exemplo de como a personalidade se manifesta:
gritando bem alto os serviços que prestou. Eu bem sei que, neste
caso, se trata apenas de uma história de botas, mas quantos casos
não existem na vida em que a personalidade do homem se vangloria
do bem que faz! O Cristo dizia: «Que a tua mão esquerda ignore o
que faz a tua mão direita», isto é, que a personalidade ignore o que
faz a individualidade. Devemos realizar as boas ações secretamente,
porque, se a personalidade se aperceber delas, tentará destruí-las.
É por isso que os Iniciados escondem cuidadosamente o bem que
fazem. Eles sabem que, se falarem nisso, os outros intrometer-se-ão
no assunto e destruirão tudo.
Conta-se que, um dia, o profeta Maomé passeava com um dos
seus discípulos, quando, bruscamente, apareceu perante eles um
homem que gritou ao discípulo: «Ah! Finalmente, encontro-te! Vais
pagar-me o dinheiro que me deves!». E começou a injuriá-lo em
termos muito grosseiros. O discípulo começou por escutá-lo, calmamente,
tentando conter a cólera, mas, incapaz de se controlar,
depressa começou a responder-lhe, de modo que acabaram ambos
por se injuriar ao desafio. Ao fim de algum tempo, cansados, pararam.
Mas, quando o discípulo procurou o Mestre por perto, já não
o viu. Descobriu-o mais longe, no canto da rua, em meditação.
«Mestre – disse o discípulo –, por que me abandonaste?» Maomé
respondeu-lhe: «Eu não me meto entre uma serpente e um tigre,
porque é perigoso. Enquanto aquele homem estava a injuriar-te e tu
permaneceste calado, havia à tua volta seres invisíveis que respondiam
por ti e te protegiam. Mas, quando começaste também a gritar,
querendo defender-te a ti próprio, esses seres abandonaram-te, e eu
também, pois já não estávamos ali a fazer nada.»
Quando a individualidade se manifesta, não o faz através do
mundo físico pela cólera, pela violência, mas através da nossa natureza
superior, pela sabedoria, pelo amor e pela verdade. Então, nós
somos poderosos, porque estamos ligados a seres perfeitos, que nos
apoiam, e o nosso inimigo acaba por compreender (mesmo que não
seja de imediato) que foi mau. Por isso, devemos ser muito pacientes,
muito resistentes.
A personalidade não pode ficar muito tempo calada: faz promessas,
chora, dá gritos de alegria… Mas muda rapidamente. É como
a lua, que está sempre a variar. Se contardes com um ser que se
manifesta através da sua personalidade, mais tarde compreendereis
o vosso erro, ao ver como ele é volúvel e instável. A individualidade,
pelo contrário, é uma força estável, na qual podemos confiar, como
o sol.
A personalidade procura todas as satisfações egoístas. Ela não
se preocupa com os outros (a não ser que tenha algum interesse
nisso), não se questiona sobre se eles estão ocupados ou se sofrem;
quer unicamente satisfazer-se a si mesma. Ao passo que a individualidade
se interessa sempre pelos outros de um modo imparcial;
ela questiona-se sempre sobre se aquilo que pensa e deseja é para o
bem de todos, e é delicada, atenta, sábia e prudente.
As entidades celestes escolhem sempre aqueles que são capazes
de realizar atos nobres e desinteressados para lhes transmitirem
aquilo que elas vêm trazer. E, como a maioria dos humanos
vivem na personalidade, não recebem do alto nem a felicidade, nem
a liberdade, nem a vida; eles são limitados, dependentes, infelizes.
Olhai para eles: todos se queixam constantemente, já não sabem às
quantas andam, sentem-se limitados, atormentam-se, o que prova,
precisamente, que eles vivem na sua personalidade.
Há muitas pessoas que esbanjam as suas vidas tentando satisfazer
a sua personalidade… Ou a dos outros! A mãe passa o tempo a
satisfazer os caprichos do filho, o marido a satisfazer todos os desejos
da mulher, a mulher a satisfazer todos os desejos do marido…
E, então, o que é que acontece? A personalidade, que é ingrata por
natureza, esquece imediatamente o bem que lhe fazem, e depois,
um belo dia, em vez de pagar através do reconhecimento àqueles
que a satisfizeram, só lhes mostra indiferença, desprezo ou até ódio.
Deveis saber que, se satisfizerdes unicamente o lado inferior dos
humanos, nunca sereis recompensados por isso; e, se depois, começarem
a acontecer-vos desgraças, não vos queixeis, pois não tendes
o direito de o fazer. Antes de vos sacrificardes pelos outros, deveis
questionar-vos sobre qual o lado que ides servir neles: a personalidade
ou a individualidade.
A personalidade não tem qualquer memória daquilo que se fez
por ela: é ingrata, fraca, pérfida. Por isso, enquanto apenas satisfizerdes
os apetites, os caprichos e as necessidades sensuais dos
outros, mais cedo ou mais tarde ficareis desiludidos, dececionados.
Se não quereis ficar dececionados com os seres, deveis trabalhar
para alimentar as suas almas, os seus espíritos, isto é, iluminá-los,
dirigi-los para a fonte, Deus, para que eles se liguem a Ele, O louvem
e O glorifiquem. Milhares de pessoas ficam estupefactas ao
verem que a fé e a confiança que têm nos outros são ridicularizadas.
Mas isso acontece precisamente porque elas depositam toda a sua
esperança nos resultados que obterão alimentando o lado inferior
dos outros. É certo que eu ouvi, muitas vezes, certos pais darem
aos seus filhos conselhos focados unicamente na satisfação da sua
personalidade: ensinam-lhes a astúcia, a sede de dinheiro ou de prazeres,
a procura do seu bem-estar pessoal em detrimento dos outros.
Pois bem, ao crescerem, essas crianças começam a aplicar estes conselhos,
com prejuízo para os seus próprios pais, que, evidentemente,
se lamentam, sem se lembrarem de que foram eles mesmos que os
instruíram nestes métodos.
O espírito, no homem, é um infeliz prisioneiro. É um rei que a
personalidade destronou, para tomar o seu lugar. Presentemente, ele
está encerrado numa masmorra, onde lhe dão como alimento côdeas
de pão bolorento e água poluída, e de onde apenas pode ver o dia por uma pequena fresta. Ninguém vem libertá-lo para lhe restituir o
seu lugar de verdadeiro soberano.
Os homens apreciam aquilo que é feito em função das suas satisfações
materiais e do seu corpo físico, mas os Iniciados, os anjos e
Deus prezam apenas o que se faz pela alma e pelo espírito.3 O que
será do alimento que destes aos vossos amigos, se não lhe tiverdes
juntado um outro alimento que dura eternamente: pensamentos,
saber, a luz, a liberdade? É preciso mudar a ideia que se tem de caridade,
pois há um tipo de caridade que não tem um efeito duradouro
e uma outra cujos efeitos duram eternamente. As pessoas comuns
não sabem alimentar o espírito dos seus pais, dos seus amigos, não
sabem torná-los mais belos nem mais fortes. A verdadeira caridade, a
dos Iniciados, consiste em fazer com que o homem retome a realeza
do seu espírito. Pode acontecer que um Iniciado se ocupe da personalidade
dos outros (isto é, que ele os cure ou lhes dê ajudas materiais),
mas fá-lo como algo secundário. Frequentemente, a caridade
comum desenvolve nas pessoas os piores defeitos: encoraja-as a ser
preguiçosas, impele-as a aproveitarem-se cada vez mais dos outros,
aumenta a sua convicção de que as pessoas caridosas são crédulas
e ingénuas, de tal modo que, em vez de se tornarem úteis, livres,
independentes e capazes de vencer pelos seus próprios meios, elas
tornam-se verdadeiros parasitas da sociedade.
Agora, que compreendestes a diferença que existe entre a personalidade
e a individualidade, deveis compreender ainda uma coisa
muito importante: é que a personalidade e a individualidade devem
caminhar juntas. O que eu vos disse acerca da personalidade não
significa que se deve matá-la, suprimi-la, aniquilá-la. Não, ela deve
ser a serva da individualidade. Sem a personalidade, a individualidade
não pode manifestar-se. A personalidade é comparável à forma,
e a individualidade, ao conteúdo. A forma é necessária, mas deve
exprimir o conteúdo. Se a forma é estúpida, sem sentido, isso é a
submissão completa do ser humano.

Quando a personalidade se torna serva do espírito humano,
este poderá fazer milagres. Ficai a saber que tudo o que entrava
o espírito, tudo o que o impede de compreender, de criar, de agir
livremente, é a personalidade. Observai o caráter daqueles que vos rodeiam e constatareis que, quanto mais a personalidade predomina, mais limitada e cheia de preconceitos é a pessoa. Ora, o mínimo preconceito acerca das opiniões filosóficas ou religiosas, nas relações
com os humanos ou no trabalho, traz consigo complicações
na compreensão e na atividade. E não existe pior preconceito do
que o da personalidade que se irrita, que se defende, que se vinga
e muda incessantemente de ponto de vista. É justamente porque
todas as iniciativas da personalidade têm um fim interesseiro que
ela está condenada a nunca ver a realidade das coisas. Quando um
Iniciado vê chegar à sua escola seres cuja personalidade está muito
desenvolvida, prevê logo quais os obstáculos que eles encontrarão
e que dificuldades terá para os instruir. A fórmula absoluta dos
Iniciados é a seguinte: quanto mais se domina a personalidade, isto
é, quanto mais nos limitamos e nos controlamos, mais nos libertamos
e aumentamos a nossa força.
Se eu vos explicasse, detalhadamente, todas as tendências que
alimentais nos vossos pais e amigos, pensando que estais a ajudá-
-los, ficaríeis alarmados. Pensais que os alimentais a eles, mas, de
facto, estais a alimentar neles entidades que não conheceis, estranhos
que comem e bebem por vossa conta sem sequer, depois, vos
darem como paga um só sentimento de reconhecimento.4 A verdadeira
ciência da Iniciação consiste precisamente em conseguirmos
discernir com exatidão as entidades que alimentamos, em nós próprios
e nos outros.
Agora, já estais preparados para compreender o sentido da parábola
do administrador infiel.
A personalidade e a individualidade têm a sua sede no grande
mundo, o macrocosmos, o universo, mas também no pequeno
mundo, o microcosmos, o homem. No homem, a sede da personalidade
é o ventre e o baixo-ventre, isto é, o que está abaixo do
diafragma. A sede da individualidade é nos pulmões, no coração e
no cérebro, ou seja, no que se encontra acima do diafragma. A linha
horizontal do esquema que eu vos apresentei corresponde, portanto,
ao diafragma.
Talvez penseis que tudo o que se encontra abaixo do diafragma
está privado de pensamento, de sentimento e de atividade. Desenganai-vos! O ventre tem um cérebro, um coração e uma vontade.
Por que é que se diz, de certas pessoas, que “têm o coração na
barriga!”?* Eu não tenho a intenção de criar uma nova anatomia,
mas deveis ficar a saber que estas duas regiões, acima e abaixo do
diafragma, representam dois senhores em cuja casa o homem está
colocado e a quem deve servir. Sim, é uma longa história, uma
longa aventura. Quando o homem vem à terra, entra ao serviço de
um amo, o corpo físico, o estômago, mas, mais cedo ou mais tarde,
é despedido, ou seja, morre. Se ele for inteligente, deve refletir nos
mesmos moldes que o administrador da parábola: «Com o que é
que eu vou ficar, se o meu amo me retirar a administração dos seus
bens? Trabalhar a terra, não posso… Mendigar? Tenho vergonha…»
O administrador sensato sabe muito bem que, quando deixar o seu
corpo físico, esse amo eternamente descontente, quererá continuar
a trabalhar na terra, mas já não terá os meios para isso. Tendo conservado
as mesmas necessidades de comer, de escutar e de experimentar
toda a espécie de prazeres, ele será tentado a mendigar, isto
é, a descer junto dos vivos, a fim de se satisfazer através deles. É
isto que acontece aos administradores muito fiéis à personalidade:
tornam-se mendigos no plano astral e dirigem-se para todos os lugares
contrários aos bons costumes, onde a multidão se diverte, a fim
de participarem nesses prazeres.
Ora, o administrador infiel era inteligente, não queria entrar
nesta categoria de espíritos mendigos. Aconselhado pela sua razão,
decidiu fazer amigos à custa de dinheiro e, para tal, reduziu a dívida
aos devedores do seu amo. O que é que isto significa? Que, em vez
de proporcionar ao seu ventre, aos seus diferentes órgãos, copiosas
refeições e prazeres excessivos, como faz normalmente a maioria
dos humanos, resolveu diminuir a proporção de alimentos ou de
satisfações que julgava dever a cada um deles. Dito de outro modo,
estabeleceu um regime de restrições para a personalidade, diminuindo
o número de refeições copiosas, de cigarros, de amantes,
etc.; e as forças, os pensamentos, o tempo, que deviam ser dedicados ao amo insaciável e devorados por este, o administrador deu-
-os, secretamente, aos amigos invisíveis dos tabernáculos eternos.
Ou seja: ele economizou um capital, para o depositar num banco
celeste, para que, no dia em que for apresentar-se ao “guichet” desse
banco, o reconheçam e o acolham. Ele dedicou tempo, energias, e
deu uma parte do seu amor, dos seus pensamentos e dos seus sentimentos
à individualidade, em vez de os reservar para a personalidade.
Foi, pois, infiel à personalidade, para conseguir fazer amigos
graças às riquezas que “injustamente” lhe retirou.

* Devido ao sentido da frase, optou-se pela tradução à letra da expressão usada
no original – “avoir du coeur au ventre” –, que, na verdade, significa “ser corajoso”.
(N. R.)

Se não interpretarmos deste modo os termos da parábola, não
poderemos compreender por que é que o administrador foi louvado
pelo seu amo. Que amo é que o louvou? Não foi, certamente, a
personalidade, que ele lesou. Por conseguinte, foi a individualidade
que lhe disse: «Tu és muito inteligente. Agiste bem.» Porque só são
permitidas uma infidelidade e uma injustiça; aquelas que cometemos
relativamente à personalidade, isto é, àquilo que é inferior,
egoísta e efémero. Pelo contrário, nunca é permitido ser infiel para
com Deus, os anjos, a pureza, a bondade. Atualmente, toda a gente
é fiel ao ventre, ao sexo, isto é, à personalidade, e infiel a Deus;
os humanos são diligentes, quando se trata de contentar as suas
paixões, os seus desejos inferiores, mas traem continuamente o
Senhor. Quantos homens não vi eu que são fiéis… ao proprietário
da taberna onde vão todos os dias! Outros são fiéis ao seu tabaco
ou a uma paixão qualquer, a um vício, a um hábito doentio. Poucas
pessoas são fiéis a hábitos superiores. Ora, a verdadeira fidelidade é
a de nunca negligenciar a oração, os pensamentos e os sentimentos
desinteressados.
Talvez vos interrogueis acerca do que representam os devedores
cuja dívida foi perdoada e de que natureza era essa dívida. Os
devedores são entidades do mundo invisível que, vindo retirar certos
elementos espirituais ao homem, devem pagar-lhos, sob a forma de
energias, de forças, menos subtis. Ao perdoar as dívidas a estas entidades,
o homem renuncia a essas forças que, consequentemente, lhe
teriam sido dadas, quer dizer, entra na via da abstinência (o jejum,
a castidade, o silêncio, a oração, a meditação). Estas medidas de
restrição têm como consequência um dispêndio de menos energias
do que aquelas de que corpo físico habitualmente necessita. Quando o corpo físico renuncia parcialmente aos seus apetites, o lado superior,
que já não tem de fornecer tantas forças e fluidos, torna-se mais
forte. Mas, quando o lado inferior come e se diverte em demasia, o
lado superior, que já não consegue manifestar-se, enfraquece, porque
é ele que fornece as energias que se manifestam no plano físico.
E, observai, Jesus não disse na parábola que o administrador
infiel perdoou aos devedores a totalidade das suas dívidas, mas
apenas uma parte. Isto significa que o homem não deve praticar as
restrições com excessos, que ele não deve ir até aos extremos, até à
mortificação e ao ascetismo absolutos.
Jesus mostra que o homem deve trabalhar para o primeiro
senhor (a individualidade), mas que não tem o direito de abandonar
o segundo (a personalidade), ou seja, que ele não tem o direito de se
privar de tudo e de se deixar morrer à força de renúncias. Ele deve
ser infiel em relação ao segundo amo, mas só em certa medida.
Suponhamos, por exemplo, que uma mulher só se interessa pela
sua aparência física e descura por completo o seu desenvolvimento
intelectual e o seu desenvolvimento espiritual, preocupando-se apenas
com os cuidados a ter com o corpo e com o rosto. De facto,
ela torna-se extremamente sedutora, doce como o mel que atrai de
longe as vespas e as moscas; ela tem imensos amigos, é festejada,
adulada… Alguns anos mais tarde, já não é tão atraente e os amigos
abandonam-na; ela lamenta o passado, sofre e sente-se isolada. De
facto, as pessoas só procuram aqueles que podem dar-lhes alguma
coisa; e agora, que está privada da sua beleza, essa mulher não tem
ninguém que a visite e lhe traga consolo. Se ela tivesse agido como o
administrador infiel e sensato, se tivesse previsto que, um dia, o seu
amo a despediria, ter-se-ia preparado para essa mudança de situação,
teria começado a estudar, a desenvolver a bondade, a inteligência,
a fim de continuar a ter os seus amigos quando já não fosse bela.
E tê-los-ia mantido, porque teria ficado com um aspeto agradável,
apesar da idade. Tenho observado, frequentemente, que as mulheres
que cultivam a sua individualidade, quanto mais envelhecem, mais
radiosas, encantadoras e luminosas se tornam. Ao passo que aquelas
que serviram exageradamente a sua personalidade ficam cada
vez mais deformadas e feias, pois vivem de lamentos, de inveja, de
cólera e de ódio por todos, o que lhes dá uma expressão repugnante.E, como chegará para cada um de nós o dia em que seremos
despedidos pelo nosso amo, devemos preparar-nos e fazer amigos
noutro plano, pois estes amigos não existem no plano físico, a frase
da parábola é simbólica: «Também eu vos digo: granjeai amigos
com as riquezas injustas.» Aquele que tem por hábito comer muita
carne – vaca, porco, galinhas, enchidos – congrega em si todas as
células roubadas a estes animais para com elas construir o seu corpo
físico. Ele deve, pois, fazer amigos graças a esse edifício construído
com riquezas injustas, para que, quando o seu corpo lhe for retirado,
ele possa ser recebido por esses amigos nos tabernáculos eternos.
E como fazer isso? Reduzindo as doses. Se até agora pensáveis
que devíeis ao vosso amo (o estômago) cinco dúzias de ostras, um
quilo de caviar, uma dúzia de salsichas, vários perus, etc., tudo isto
copiosamente regado com os melhores vinhos e seguido de café,
alguns licores e cigarros, procurai reduzir um pouco este menu:
não deixareis de ficar bem alimentados e tereis reduzido as dívidas
para com certas entidades que deveriam fornecer-vos as forças
necessárias para digerir uma tal refeição. Deste modo, fareis amigos
entre essas entidades invisíveis, que, mais tarde, vos receberão nos
tabernáculos eternos.
Esta restrição referente ao estômago deve ser compreendida não
apenas em relação às satisfações e aos prazeres do plano físico, mas
também às dos planos astral e mental, que pertencem à personalidade,
tal como vos mostrei no esquema.
E quando Jesus disse: «Quem é honesto nas coisas mínimas
também o é nas grandes; e quem é infiel nas coisas mínimas é-o
também nas grandes. Se não administrardes fielmente as riquezas
injustas, quem vos confiará as verdadeiras?», isto significa que, se
não fordes fiéis à individualidade nas pequenas coisas terrestres, não
poderão ser-vos confiadas as grandes riquezas do espírito.
Esta parábola prova que Jesus fez numerosas revelações aos
seus discípulos, mas os evangelistas relataram apenas uma pequena
parte delas. E agora é preciso interpretar, o que não é muito fácil.
Há, evidentemente, uma primeira possibilidade de interpretação,
que consiste em estudar cada palavra, em comparar as diferentes
versões, em reportar-se aos textos hebreu e grego primitivos, em procurar as lacunas, as deformações voluntárias ou não, as cópias
mal feitas, em aprofundar algumas questões do ponto de vista histórico,
etc. É a isto que se chama a exegese sagrada. Toda a gente se
interessa por este tipo de pesquisas, mas, mesmo prosseguindo-as
eternamente, nunca se chegará a encontrar a chave das Escrituras.
Confesso-vos que, apesar de eu ter lido muitas coisas sobre estas
questões, não me interessa saber como foram escritos os Livros
Sagrados e onde se encontram os erros de tradução e de reprodução.
Para mim, essa erudição não é assim tão importante. O que me interessa
é saber o que pensava Jesus, o que ele subentendia, quando
falava por parábolas, e é difícil saber isso através da exegese. Mas
as palavras de Jesus ainda estão vivas na “crónica do Akasha” e nós
devemos elevar-nos até aí, para descobrir o seu sentido. Quando o
tivermos compreendido, voltaremos ao plano físico para interpretar
o texto.
Com os meios normais, apenas podemos conhecer o sentido
literal, no plano da forma. Ora, a verdade não pode ser encontrada
no plano físico, na forma; só a descobrimos se nos elevarmos muito
alto. O verdadeiro sentido está nos planos superiores, no alto, e,
se não interpretarmos os Livros Sagrados elevando-nos interiormente,
não poderemos apreender o seu sentido. O primeiro método,
a exegese, é o da personalidade; o segundo é o da individualidade.
Pelo método da individualidade, o espírito tem acesso às regiões
mais elevadas, onde se encontram as explicações de todas as coisas,
ao passo que o método da personalidade fá-lo descer a um ponto
onde só se encontram fragmentos, farrapos deformados da verdade.
Quando as pessoas se envolvem em grandes discussões e argumentações
complicadas, afastam-se do sentido e do conteúdo, que se
tornam cada vez mais incompreensíveis.5
Ao elevar-se, o nosso espírito alcança seres mais evoluídos do
que nós, conhecedores das grandes verdades contidas nos textos
sagrados e que nos esclarecem a este respeito. Ao passo que a exegese,
o método da personalidade, faz o espírito descer até seres
inferiores que nos enganam. A primeira via conduz à humildade,
porque incita o homem a comparar-se, inconscientemente, com os
seres superiores com quem entra em contacto. E essa comparação
leva-o a considerar-se ignorante, fraco, imperfeito, e a humildade começa a nascer nele. Ao passo que, ao descer, ele é obrigado a
comparar-se com os humanos vulgares, os animais, os insetos, os
micróbios, e então, claro, acha-se grandioso, sabedor, único, e o
orgulho invade-o.
Quando o discípulo ergue o olhar para os seres muito evoluídos,
vê a sua imperfeição e compreende o trabalho que ainda deve
realizar em si próprio, torna-se humilde, abre-se, e o Céu começa
a derramar sobre ele as suas bênçãos. Pelo contrário, o orgulhoso,
que está sempre a comparar-se aos seres minúsculos, para na sua
evolução, fecha-se. O orgulho é uma barreira. Jesus disse-o: «Se
não vos tornardes como as criancinhas, não entrareis no Reino de
Deus.»6 Contrariamente àquilo que se crê, criança não significa
ignorante, pelo contrário. Por isso, é necessário que venha uma nova
cultura: a da criança, da simplicidade, do amor, da humildade, em
que os homens se compararão aos Iniciados, aos grandes Mestres,
aos anjos… e sentirão o quanto ainda têm de aprender. Então, a
sabedoria, o amor e a liberdade aparecerão no mundo.
Em geral, os humanos instruem-se com a ajuda de experiências
insuficientes, feitas pela sua personalidade. Mas os discípulos, os
Iniciados, instruem-se junto da verdadeira luz, junto do Espírito;
e é por isso que eles se tornam clarividentes, curadores, profetas.
Aqueles que se instruem nas escolas, junto de personalidades humanas,
também sabem qualquer coisa, mas a maior parte do seu saber
não lhes serve para melhorarem a sua saúde, nem para aumentarem
a sua felicidade ou a sua sabedoria.
Jesus falou de dois senhores. Lede o fim da parábola: «Nenhum
servo pode servir dois senhores: ou terá ódio a um e amor ao outro,
ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir Deus e
Mammon.» Mais adiante, está escrito: «Aquele que é engrandecido
entre os homens é uma abominação perante Deus.» Portanto, aquilo
que é glorioso para a personalidade, para o mundo, é odioso para a
individualidade, para o espírito. A personalidade procura a aprovação
do público, da multidão ignorante, enquanto a individualidade
procura a do mundo divino.
Esta parábola do administrador infiel está relacionada com os
versículos do Evangelho de São Mateus: «Não acumuleis tesouros
na terra, onde os vermes e a ferrugem os destroem, e onde os ladrões penetram e roubam; mas acumulai tesouros no céu, onde nem os vermes nem a ferrugem entram neles ou os destroem, e
onde os ladrões não penetram nem roubam. Pois, onde estiver o
teu tesouro, aí estará também o teu coração. O olho é a luz do
teu corpo. Se o teu olho estiver em bom estado, todo o teu corpo
estará iluminado. Porém, se o teu olho ficar em mau estado, todo
o teu corpo estará em trevas. Ora, se a própria luz em ti se houver
tornado em trevas, quão grandes serão essas trevas! Ninguém
pode servir dois senhores, pois ou odiará um e amará o outro, ou
afeiçoar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir Deus e
Mammon.» Isto prova que Jesus falou em várias ocasiões sobre esta
questão dos dois senhores.
Mas eu já vos disse e repito: não se deve matar a personalidade.
A personalidade é magnífica, quando se torna serva da individualidade.
Sem a personalidade, não podemos fazer nada na terra; mas o
seu papel é o de serva e ela não deve deixar de o ser, pois, quando
ela começa a querer desempenhar o papel de dona de casa, tudo no
homem sofre uma reviravolta e ele age sem bom senso.
Procuremos todos pertencer à cultura do espírito. Deixemos um
pouco de parte a nossa personalidade, porque ela não pode servir-
-nos para grande coisa, enquanto não se submeter à individualidade.
Desejo que o amor que traz a verdadeira vida, a sabedoria que
traz a luz e a verdade que dá a liberdade estejam sempre convosco e
em vós.

Paris, 30 de Abril de 1938

Notas
1. Cf. A chave essencial para resolver os problemas da existência, Obras completas,
t. 11, cap. III : «Dar e receber (o sol, a lua e a terra)».
2. Cf. A verdade, fruto da sabedoria e do amor, Col. Izvor n.° 234.
3. Cf. Nas fontes inalteráveis da alegria, Col. Izvor n.° 242, cap. XI : «O que
significa “partir para o estrangeiro”?».
4. Cf. A árvore do conhecimento do bem e do mal, Col. Izvor n.° 210, cap. VII :
«A questão dos indesejáveis».

ÍNDICE

I – Doçura e humildade
(Jesus entre os dois ladrões) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

II – «Aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á» . . . . 31

III – Trocas vivas e conscientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

IV – O administrador infiel
(personalidade e individualidade) . . . . . . . . . . . . . . . . 65

V – Acumulai tesouros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

VI – O milagre dos dois peixes e dos cinco pães . . . . . . . . 105

VII – Os pés e o plexo solar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

VIII – A parábola do trigo e do joio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

IX – A alquimia espiritual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

X – A galvanoplastia espiritual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

XI – Os poderes da mãe durante a gestação . . . . . . . . . . . . 199