(parte do capítulo) O QUE É A ESPIRITUALIDADE
Se pedíssemos a cem pessoas que procurassem definir “espiritualidade”, teríamos sem dúvida cem respostas diferentes, de tal forma o assunto é impreciso e ambíguo. Obviamente, não pretende o autor deter quaisquer respostas finais e definitivas sobre o tema (se é que existem), mas simplesmente oferecer algumas sugestões, fruto de uma reflexão de mais de trinta anos sobre o assunto.
A palavra “espiritualidade” tem sofrido ao longo dos tempos, sobretudo os modernos, uma deriva semântica que a tem esvaziado do seu sentido mais profundo e passado a ser aplicada em qualquer situação que tenha um toque de misticismo, naturalismo ou simplesmente esteticismo – a espiritualidade da natureza, de um ambiente, de uma qualquer prática “mística”… hoje, o termo “espiritualidade” aplica-se praticamente de acordo com os humores de cada um, desvirtuando por completo o seu verdadeiro sentido. Assim, procuremos analisar com alguma seriedade o que poderá ser a espiritualidade à luz dos ensinamentos esotéricos mais fiáveis.
Volto aqui a frisar que não será nunca intenção do autor presumir dispor de respostas definitivas sobre o tema, mas tão-só apresentar algumas reflexões pessoais.
É necessário advertir o leitor que nunca se aventurou por estes temas e que, de alguma forma, possui rudimentos religiosos passados pela visão cristã do mundo, que deverá fazer um esforço de adaptação e compreensão de novos conceitos e termos – logos, karma, reencarnação, mestres hierarquia, planos – que nada tem a ver com aqueles com que está familiarizado.
Em primeiro lugar, parece-me óbvio referir que a palavra “espiritualidade” remete para o conceito de “espírito” e este, naturalmente, pressupõe que nem o homem nem o universo se esgotam numa dimensão meramente material, mas que existirão outros níveis ou planos imateriais de existência, alguns dos quais designados de “espirituais”.
Cada um destes planos foi estudado em maior ou menor detalhe por diversas escolas ou movimentos esotéricos, nomeadamente a Teosofia, a Rosa-Cruz e o Espiritismo.
E destes estudos chegam-nos informações preciosas sobre a extraordinária grandeza do que poderá ser o universo supra-físico e o destino evolutivo do ser humano.
A visão do homem e do universo que o autor subscreve emerge dos ensinamentos teosóficos transmitidos pela Sociedade Teosófica, organização formada em finais do século XIX, com sede
mundial na Índia, em Madras / Chennai e que foi patrocinada pelos Mestres Kuthumi, Morya e, mais tarde, Djwhal Khul, para disseminar pela humanidade o mais vasto e extraordinário acervo de informações esotéricas alguma vez dado ao mundo .
Estas informações chegaram à humanidade através de duas obras seminais – Ísis Sem Véu e Doutrina Secreta – escritas pela fundadora da Sociedade Teosófica, Helena Petrovna Blavatsky, também conhecida por HPB.
Por seu turno, em dezenas de pequenos livros de natureza pedagógica, Charles Leadbeater e Annie Besant disseminaram os ensinamentos teosóficos ao grande público. Na verdade, para abordarmos o tema da espiritualidade, deveremos começar por conhecer e compreender a estrutura do homem e do universo onde vivemos, pois é dela que emana a visão esotérica da espiritualidade. Sem este conhecimento prévio, corremos o risco de cair no erro que atrás referimos de utilizar esse termo de forma perfeitamente aleatória ou caprichosa – um vazio semântico sem qualquer sentido – que deixa desanimados e desencantados aqueles que realmente buscam respostas sérias sobre o assunto.
De acordo com estes ensinamentos (e de forma muito resumida), o homem é um centro individual de consciência, também designado por “Mónada” ou “Espírito” que evolui no sistema solar.
O sistema solar, como aliás todas as estruturas do cosmos, é gerado por uma consciência criadora cósmica, designada “Logos Solar ”. Este ser, gera a partir da sua própria essência, toda a matéria, energia e todas as consciências individuais (que chamamos “espíritos ou mónadas”) que aí irão viver e evoluir.
O objectivo da evolução humana é permitir que cada mónada ou espírito se torne, a seu tempo, também um ser criador. Para tal, é necessário, como a qualquer criador, conhecer perfeitamente a matéria com que vai operar, os instrumentos com que a vai trabalhar e as técnicas para o fazer – e isto exige treino, muito treino.
O campo de treino do ser humano é o sistema solar nos seus múltiplos planos de existência. É preciso que ele domine perfeitamente a estrutura da matéria que os constitui e todas as condições, fenómenos, circunstâncias e eventos que eles permitem experimentar.
O sistema solar é formado por sete planos ou níveis de existência e o homem possui sete corpos formados de matéria de cada um desses sete planos. Com esses sete corpos, consegue fazer a experiência, como dissemos, dos diferentes fenómenos e condições que esses planos podem oferecer, aprendendo e integrando toda essa informação e experiência na sua memória imaterial.
• Os três planos mais subtis – causal, búdico e átmico – são designados “planos superiores ou espirituais”;
• Os três planos mais densos – físico, astral e mental – são designados “planos inferiores ou materiais”
E distinguem-se pelo grau de subtileza dos átomos que os constituem e pelo seu ritmo vibratório.
Poderemos perguntar a razão pela qual a Tradição decidiu designar estes planos de “inferiores e superiores”.
Efectivamente, à medida que a consciência humana acede gradualmente dos planos inferiores aos superiores, sente uma vasta expansão da forma como o mundo é visto. As nossas percepções normais do espaço e do tempo ampliam-se enormemente, as forças físicas que predominam em cada plano diversificam-se, a própria consciência parece expandir-se e integrar em si todas as outras consciências do cosmos, mas sem nunca perder a sua individualidade própria. São experiências impensáveis para seres humanos normais como nós mas que, com alguma sorte (e mérito), poderão ser experimentadas através de curtos flashes internos ao apreciar uma paisagem sumptuosa, ouvir uma música inspiradora, ler as palavras de um Mestre. Esses breves estados de arrebatamento, em que o tempo parece parar e nos sentimos parte de algo muito maior do que nós, no qual nos diluímos sem nunca perder a nossa individualidade, permitem-nos pressentir o que poderá ser a vida nesses planos – ampla, unificada, pacífica, integradora, bela…
Além disso, existe uma outra diferença fundamental que justifica esta divisão. Nos planos inferiores (físico, astral e mental inferior), reina uma visão separatista e egocêntrada do mundo e das coisas, onde estas nos aparecem como sendo totalmente distintas e avulsas, não tendo aparentemente nada em comum. Cada homem, cada planta, cada animal, cada pedra, cada casa nos aparecem como entidades totalmente separadas, sem qualquer relação entre si. Esta perspectiva de encarar o mundo típica dos seres que habitam os planos inferiores gera, por isso, os valores que conduzem o nosso mundo – egoísmo, agressividade sob todas as formas, separatismo, desconfiança, fragmentação, divisionismo, isolacionismo… O mundo de hoje dá-nos um triste mas claro exemplo da visão do mundo e dos valores que predominam quando a humanidade apenas se encontra focada nos planos inferiores.
Contudo, nos planos superiores (mental superior ou causal), a situação muda totalmente de figura.
De uma forma inexplicável para simples mortais como nós, mas perfeitamente confirmadas por todos aqueles que, por mérito e esforço, aí conseguiram aceder, a forma como conhecemos o mundo altera-se radicalmente. Enquanto que nos planos inferiores, o nosso conhecimento do mundo se faz através dos órgãos dos sentidos e da mente, nos planos superiores existem outros mecanismos de conhecimento da realidade que podem parecer mágicos a quem habita os planos inferiores. À falta de melhor designação, poderemos dizer que nos planos superiores o conhecimento se processa por “osmose”, por “fusão” entre o sujeito e o objecto. Por exemplo, se eu estiver junto a uma árvore, posso integrar ou associar a minha própria consciência à consciência (mais rudimentar) da árvore, sentindo em mim todas as suas experiências e vivências como se fossem minhas. Estes processos de “fusão de consciências” que são a forma normal de conhecer nos planos superiores modificam por completo a forma como se vê e compreende o mundo e os seres. Emerge um sentimento de unidade da vida, a ideia vivida que tudo o que existe se encontra interligado e interdependente e que tudo possui uma origem e natureza comuns – o Logos Solar, fonte de toda a vida do sistema solar.
Permita-se-me um exemplo ilustrativo desta situação. Imagine o leitor um oleiro que acabou de receber uma tonelada de barro para criar as suas peças.
Com esse barro, ele vai produzir centenas ou milhares de peças todas diferentes – em tamanho, forma, função, cor… Ao expor essas peças ao público, nada parece terem em comum. São todas perfeitamente independentes umas das outras, sem aparentemente nada que as ligue. Contudo, quem conheça os bastidores do processo sabe perfeitamente que todas possuem uma natureza e origem comuns:
• A natureza do próprio barro que lhes deu origem;
• A sua origem comum a partir da tonelada de barro trabalhada pelo oleiro que, no nosso exemplo, representará o Logos Solar, o grande criador;
O mesmo se passa no nosso sistema solar.
Contudo, existe ainda uma outra diferença fundamental entre os planos ditos inferiores e superiores. Nos primeiros, a matéria manifesta-se com o aspecto de formas dotadas de contornos, tais como estamos habituados a observá-las no nosso quotidiano; mas nos planos superiores, as formas tais como as conhecemos, desaparecem e tudo o que existe são campos de energia em níveis vibratórios inacreditavelmente elevados. São mundos que nada tem a ver com o que conhecemos, mas onde a nossa consciência da vida, dos seres e das coisas se amplia de uma forma avassaladora.
Cada um destes planos possui características próprias que lhe são específicas e permite ao ser humano experimentar o mundo e a vida de formas diferentes. De forma resumida, diríamos que os planos permitem as seguintes experiências:
De forma naturalmente sintética, é-nos dito que todos estes planos são compostos de matéria e apresentam propriedades e qualidades diferentes uns dos outros, como por exemplo:
• nas forças físicas dominantes (por exemplo, nos planos subtis, faz-se sentir cada vez menos os efeitos da gravidade e cada vez mais as do magnetismo);
• na estrutura do espaço e do tempo – a distinção entre passado, presente e futuro tende gradualmente a esbater-se e a sobrepor-se;
• no grau de separatividade dos seres e objectos (nos planos subtis, torna-se cada vez mais clara a visão de que, independentemente da infinita diversidade entre os seres da natureza, todos possuem uma origem e natureza comuns – a consciência cósmica de onde são originários, que as religiões tradicionais designam por Deus e a Teosofia designa por Logos);
• na visão cada vez mais lata, profunda e abrangente que se possui do mundo e dos seus fenómenos (tal como um montanhista que, quanto mais sobe uma montanha, mais lata e abrangente é a imagem que vislumbra do horizonte. Note-se que o horizonte é sempre o mesmo, o que varia é a perspectiva que o alpinista dele tem);
• na compreensão do grau de inter-relação e interdependência entre os múltiplos fenómenos e seres do universo, compreensão esta que está, por exemplo, na origem da actual visão holística e integrada do mundo e da vida, da noção de ecossistema e do conhecido mantra ecológico – “a Vida Una ou a Unidade de Toda a Vida”;
A ideia da “Unidade de Toda a Vida” e “A Vida Una” ou num registo mas místico “Tudo é Um”, tem certamente um profundo sentido esotérico e chega até nós a partir do esoterismo oriental. Remete para uma visão de Deus, do Universo e do Homem radicalmente diferente de tudo o que conhecemos através do judaico – cristianismo ou da filosofia ocidental. Na verdade, olhamos uns para os outros e nada parece sugerir que “sejamos todos um”. Pelo contrário, a diferença enorme de aspectos físicos, de particularidades de carácter, de objectivos de vida, de hábitos, costumes, culturas e tradições é de tal forma evidente que nada parece sugerir qualquer tipo de unidade essencial do género humano. Na verdade, uma simples observação superficial da sociedade, qualquer sociedade, parece desmenti-lo. O mesmo se passa com a Natureza. Contemplando a sua espantosa diversidade e complexidade, parecerá no mínimo bizarro afirmar-se que também aí “Tudo é Um”.
Qual então o sentido dessa afirmação? Na verdade, para a podermos compreender, exige-se que vamos muito para lá das aparências, daquilo que o olho pode ver e o ouvido pode ouvir. E se o fizermos com alguma discriminação e atenção, talvez o sentido profundo de tal unidade comece finalmente a revelar-se de forma mais clara.
Na verdade, este “mantra”, repetido hoje de forma frequente, deverá ser entendido (na opinião do autor) no mesmo sentido do do exemplo do oleiro que atrás referimos – tudo o que existe possui uma origem e natureza comuns que transcendem o seu aspecto meramente físico-material.
Aqueles poucos que conseguiram projectar a sua consciência para esses planos mais subtis dizem-nos que as fronteiras materiais e as formas físicas dos seres e objectos que conhecemos no nosso quotidiano e que nos permitem identificá-las se vão gradualmente esbatendo e diluindo, “transformando-se” em campos de energia que interagem mutuamente uns com os outros. É certamente uma afirmação difícil de aceitar por quem habita apenas os nossos conhecidos planos materiais, mas que é confirmada por todos aqueles que acederam a esses planos mais subtis. Chegados a um determinado ponto, que poderíamos designar a 12ª dimensão, a dimensão mais subtil do nosso sistema solar, esses múltiplos campos de energia parecem fundir-se num só e, mais tarde, num único ponto. Este ponto será a origem de tudo o que existe no sistema solar – a consciência criadora máxima do sistema, também designada Logos Solar. Daí, a ideia da “Unidade de Toda a Vida”. Não porque sejamos todos iguais, mas porque tudo e todos provimos de uma fonte comum, o Logos Solar, cuja natureza também partilhamos, da mesma forma que, numa família humana, os filhos partilham essa origem e natureza comuns com os seus pais.
Quando um ser se apercebe desta situação, tende a desenvolver em si um estado de respeito e reverência por tudo o que existe, um estado de paz, bondade, proximidade e inofensividade por toda a Criação. A visão predatória e destrutiva que o ser humano tem projectado sobre si próprio e a Natureza pura e simplesmente deixam de ser possíveis, pois vemos no outro um reflexo de nós mesmos – um ser senciente (embora em níveis muito diversificados) que quer existir e ser feliz, isto é, ser capaz de viver de acordo com a sua própria natureza. Não será certamente por acaso que o Cristianismo e o Budismo colocam o Amor e a Compaixão como as grandes pedras de toque da vida cósmica.
• O Amor, no sentido de uma disponibilidade total e desinteressada para ajudar e ser útil a quem de nós necessitar;
• A Compaixão, no sentido de sermos capazes de nos colocar permanentemente no lugar do outro, ponderando sempre muito bem as consequências de todos os nossos actos e evitando causar qualquer sofrimento desnecessário.
Contudo, é importante reter que nem o Amor nem a Compaixão têm de ser ingénuos e patetas. Vivemos num mundo violento e agressivo e, por vezes, impõem-se atitudes musculadas para lidar com esse estado de coisas. Relembro aqui uma pequena estória passada entre um jornalista matreiro e o Dalai-Lama, em que o primeiro lhe perguntou o que faria se estivesse perante a eminência de um crime e tivesse uma arma à mão. Calmamente, o Dalai-Lama respondeu que provavelmente daria um tiro na perna do potencial criminoso e depois lhe faria uma festinha na cabeça. A moral da história é que, nem sempre é possível evitar o uso da força no nosso mundo. Mas, é fundamental que esse uso seja totalmente livre de ódio, rancor e ressentimento. Foi simplesmente algo que teve de ser feito para evitar um mal maior. Por experiência própria, todos sabemos que, quando somos confrontados com a necessidade de fazer escolhas, nem sempre essa escolha é entre uma coisa boa e outra má. Frequentemente, ambas são más. Nestes casos, existe apenas uma solução – optar pelo mal menor.
Como atrás referimos, o objectivo da evolução da mónada ou espírito é aquisição de conhecimento e experiência de todas as possibilidades de vida e consciência nos diferentes planos solares para mais tarde se tornar um ser criador. Este é um processo longo que exige que a mónada crie uma estrutura que lhe permita aceder a esse conhecimento e experiências. Assim, a mónada (através de processos demasiado longos para aqui se explicarem) dota-se e associa-se a um conjunto de corpos através dos quais “mergulha” na matéria e nas suas experiências, agradáveis ou dolorosas – fenómeno que designamos “reencarnação”.
Este longo processo evolutivo decorre, de forma resumidíssima, em duas etapas principais:
• Numa primeira fase, destinada a vivenciar sobretudo as experiências nos planos mais densos – físico, astral e mental – a mónada gera uma estrutura intermédia designada “ego”, formada pelos corpos físico, astral e mental e “mergulha” nos mundos materiais, buscando experiências intensas através dos métodos do próprio ego – agressividade, busca de poder e prazer, sensorialismo, materialismo, possessividade…
• Numa segunda fase, quando estas experiências já se encontram vivenciadas e integradas na sua memória, a mónada passará à etapa seguinte do seu processo evolutivo. Esta consiste em colocar sob controlo total os seus corpos de experiência que, ao longo de centenas de encarnações se “viciaram” no materialismo, sensorialismo e agressividade do ego, situação que deverá ser revertida nesta segunda etapa.
Para tal, a mónada instala na consciência material sentimentos de vazio e insatisfação com a vida material por muito bem-sucedida que possa ser ou momentos de amargura existencial (desgostos, sofrimentos, tragédias pessoais ou familiares…) que o façam repensar as prioridades da vida e os valores e ideais por que se irá reger. Assim, gradualmente, cada ser irá procurar fora da materialidade caminhos que o libertem desse vazio e insatisfação e que o ensinem a lidar de forma inteligente e suportável com as tragedias da existência. Começa aqui o Caminho da Espiritualidade.
Assim, nesta perspectiva de encarar o homem e o universo, emerge um pequeno vislumbre do que poderá ser a espiritualidade – um processo que consiste em trazer gradualmente para a nossa consciência material as condições e qualidades dos mundos imateriais.
De uma forma resumida, poderíamos dizer que tais qualidades são – paz, bondade, compaixão, justiça, solidariedade, inofensividade, altruísmo, desapego.
Em obras anteriores, o autor propôs duas “definições” de espiritualidade (que poderiam ser muitas outras):
1. A busca da paz interior através da prática dos valores do Altruísmo, Compaixão e Desapego;
2. Um processo de transformação interior que consiste em trazer para os planos materiais os valores e comportamentos específicos dos planos espirituais – Altruísmo, Compaixão e Desapego.
Nestas duas definições, frisaria a importância da noção de “transformação interior”, pois esta é a verdadeira chave da vida e evolução espirituais. Daqui se justificam os comentários apresentados na introdução deste livro sobre a ilusão muito moderna que consiste em associar a “espiritualidade” a todo um conjunto de comportamentos e práticas exteriores, que mais não são do que pura manifestação de show-off, ignorância ou projecção patética de um ego bem inflacionado. Quando olhamos para o comportamento e ensinamentos dos grandes Mestres espirituais, observamos uma enorme sobriedade e humildade, sem qualquer tipo de exibicionismo ou altivez – ao contrário de tantos “mestres” actuais, sempre dispostos a opinar sobre tudo, sem nunca terem dúvidas sobre nada e crendo tudo saber sobre o que cada um deve fazer para melhorar a sua vida, algo que nenhum Mestre verdadeiro alguma vez se atreveu a fazer.
Todos os verdadeiros Mestres do Oriente e do Ocidente são seres que irradiam uma paz, alegria e serenidade totais. São de uma simplicidade e humildade desarmantes. Existem para servir e ajudar de forma totalmente desinteressada e desprendida. Estimulam e encorajam uma mente ampla, limpa e aberta, totalmente liberta das pieguices, lamechices, sentimentalices e vaidades que os falsos “mestres e gurus” modernos tanto gostam de alardear
Não será certamente por acaso que os Mestres da Sabedoria aconselham a necessidade absoluta de os buscadores desenvolverem a qualidade da discriminação – Viveka, em sânscrito – que consiste num esforço em tentar distinguir a verdade da falsidade, a transparência da demagogia, a pureza de intenção do sensacionalismo vazio.
1. É necessário que as pessoas sejam capazes de se abstrair do seu estado de sofrimento ou inquietação interior e não se entreguem nas mãos do primeiro “mestre”, escola ou movimento que, eventualmente, surjam na sua vida, por muito sedutores ou inspiradores que possam parecer;
2. É preciso avaliar se os ditos “mestres” vivem de acordo com o que pregam, se os “ensinamentos” fazem sentido e assentam numa lógica coerente;
3. É também central analisar se o “mestre” domina realmente o tema ou se limita a debitar banalidades num tom pretensamente sábio ou místico.
Nos tempos actuais, é também muito frequentemente abusar das palavras “luz e amor”, sem que se saiba muito bem do que se está a falar. De alguma forma, parece pensar-se que repetindo frequentemente estes dois termos, o indivíduo ascenderia, por algum processo mágico, a um estado superior de consciência, excelso e sublime, que o afastaria do comum dos mortais e lhe daria acesso a um conhecimento superior sobre a natureza e os problemas do mundo. Na verdade, a quantidade de ilusões e fantasias que cada vez mais envolve a dita “espiritualidade democrática e popular” é avassaladora. O desejo de viver uma vida de pendor espiritual nada tem a ver com este ridículo folclore de exibicionismo popular e pseudomístico, mas a um esforço permanente e perseverante ao longo de dezenas de encarnações, onde lentamente, muito lentamente, o indivíduo se vai libertando das cangas do ego, acumuladas elas também durante dezenas ou centenas de encarnações. E, se algumas pessoas, parecem genuinamente encarnar e viver de acordo com os grandes valores e ideais espirituais, não nos enganemos – isso não é um milagre que lhes aconteceu nem um resultado fácil de alcançar, mas a consequência de um trabalho intenso de autodepuração que já se terá iniciado muitas encarnações antes. Nada, no universo, acontece por acaso ou por alguma “cunha ao Criador”. É também frequente vermos estes pequenos “mestres” abusar do palavreado oco, vazio e pseudomístico, de se exibirem em poses e trajes bacocos, de captarem a atenção do seu público com gestos teatrais, de simularem viver em estado de permanente paixão (já o próprio povo, na sua antiga sabedoria, nos avisa que as paixões matam), enfim, um estado de teatro e encenação permanentes…, mas que atrai um número infinito de incautos e gente frustrada e aflita com a vida.
Perguntar-se-á, mas afinal qual o mal de tudo isto? E a resposta é muito simples – rigorosamente nada, salvo uma enorme ilusão e fantasia de se pensar que vivendo assim se está a viver uma vida mais espiritual, quando, na verdade, se vive uma farsa, um logro (bonitos sem dúvida) mas que se desmoronam rapidamente às primeiras frustrações e constrangimentos sérios que a vida certamente lhes trará. A capacidade de resistir às contrariedades e tragédias que a vida nos traz (e a todos chegarão com certeza) não assenta nestas festas e folguedos continuados, mas num compromisso sério, constante e perseverante com a dimensão superior de cada um, lutando seriamente (em silêncio e privacidade individuais) contra as suas múltiplas imperfeições e vícios, procurando transmutá-los e substituí-los pelos valores, práticas e comportamentos verdadeiramente espirituais.
A noção de “luz”, hoje tão frequentemente associada a abraços e beijos teatrais resulta da estrutura do próprio universo. Os grandes clarividentes da Sociedade Teosófica, quando acederam pela primeira vez ao plano astral e depois ao plano mental ficaram surpreendidos com a sua torrencial dimensão luminosa e afirmaram que, esses planos, numa primeira abordagem, podem ser definidos como pura Luz, onde seres e objectos se diluíam em nuances de luz dentro da luz ambiente. Se no plano físico, a luminosidade que os seres e objectos apresentam são resultado do reflexo da luz solar e eléctrica, nos planos superiores a situação decorre de forma diferente – não só os próprios objectos são luminosos em si como a paleta cromática que os caracteriza é infinitamente mais vasta do que aquela que conhecemos aqui na Terra. E quanto mais se ascende nos planos do universo mais esta característica se reforça – a intensidade cromática e luminosa é cada vez mais diluviana e a paleta cromática cada mais expandida. Como dissemos, sabemos também que, a partir do plano causal, os objectos com os seus contornos familiares simplesmente desaparecem e tudo o que existe é uma infinidade de flashes e campos luminosos – onde tudo é luz e movimento constante com tudo a diluir-se dentro desse oceano de luz. Sabemos também que, no plano físico, o branco representa a síntese de todas as cores conhecidas. Possivelmente, o mesmo acontecerá nos planos astral e mental. Mas, uma vez que a paleta cromática desses planos é muito mais extendida que a do plano físico, a luz branca desses planos será certamente muito mais intensa, inclusiva e abrangente. E é também perfeitamente possível que essa mesma cor branca se transforme num branco totalmente desconhecido no plano físico. E, nos planos superiores ou espirituais, é também perfeitamente aceitável que esse branco já alterado dos planos astral e mental se transmute em algo de tão desconhecido que o único termo físico que o poderá remotamente definir será “Luz”.
Daqui poderemos tentar compreender as origens desta obsessão pela “luz” que domina os movimentos ditos “espirituais” modernos – uma tentativa de designar essas dimensões superiores da existência, mas sem terem, contudo, a menor noção do que o termo realmente significa.
De alguma forma, o mesmo sucede com o termo “amor”. Na nossa sociedade, este termo está claramente tingido pela sua dimensão meramente material e sensorial e, quando surge, vem sempre associado à ideia de beijos e abraços muito “sentidos e apertados”, de uma felicidade artificial e postiça, de um estado de alegria ambiente que rapidamente se diluem quando a “festa e farra” terminam.
Na verdade, no sentido puramente espiritual, o Amor nada tem a ver com esta folia e teatro permanentes. O Amor espiritual é algo de muito mais simples, profundo e humilde e sempre foi uma característica muito clara de todos os grandes Mestres. Ele consiste numa disponibilidade permanente, sincera e desinteressada de ajudar e servir, isto é, de colocar à disponibilidade de todos a sua Sabedoria, conhecimentos e experiência da vida, sem nada esperar em troca. É um estar ali permanente e constante para ajudar quem precisa. sem nada impor…sem abraços, beijos ou folias de qualquer espécie.
É evidente que, para egos desenfreados e exibicionistas, isto é algo de inaceitável, pois não lhes permite uma plateia que os adule e inflacione a sua conta bancária. É perfeitamente evidente que alguns destes mestrinhos actuais possuem aquilo que hoje se chama “carisma” que se pode definir como “uma habilidade inata de alguns seres humanos de conseguir encantar, persuadir, fascinar ou seduzir um outro indivíduo, através da sua forma de ser e agir”. Esta capacidade assenta num conjunto de características de personalidade – auto-confiança, palavra fácil, capacidades teatrais, descaramento – que lhes permite conquistar (pelo menos por algum tempo) um público numeroso. Mas, mal as pessoas começam a aperceber-se da falsidade e vazio da sua vida e comportamento, começarão gradualmente a afastar-se (salvo os fanáticos que sempre os há).
Nunca é demais sublinhar que a prática do Amor nunca se pode sobrepor ao livre-arbítrio alheio. Aos que procuram trilhar as vias da espiritualidade está totalmente vedada a possibilidade de forçar a liberdade de escolha e de consciência de terceiros. Propor, explicar, sugerir, encorajar, sim. Mas nunca forçar, manipular, atemorizar. Por maior que seja a boa-vontade e entusiasmo em ajudar, é importante ter-se a consciência que não se pode fazer o caminho de ninguém. A opção pelos caminhos do espírito é absolutamente individual, voluntária e auto-consciente. Nenhum Mestre teria a mais pequena veleidade de impor fosse o que fosse aos seus discípulos, seguidores ou simplesmente a quem lhes pedisse alguns conselhos.
Poderiam ensiná-los a pescar, mas nunca pescar por eles. Se o fizessem, privá-los-iam, egoisticamente, da oportunidade de aprender. Por muito que se ame ou se queira amar alguém (neste sentido de amor despojado), é preciso permitir que cada um faça as suas próprias experiências, cometa os seus erros e busque os caminhos mais adequados ao seu temperamento e inclinações.