INTRODUÇÃO
Deus está acima da própria unidade.
Clemente de Alexandria
As primeiras Upanixads, entre as quais se conta, com primazia, a da Grande Floresta, datam de entre o século viii ao vi, antes de Cristo. Onze, treze, ou catorze, são consideradas como autênticas, antigas e fundamentais, e constituem, propriamente, o Vêdanta – o fim do Vêda.
A tradução inicial das primeiras Upanixads foi feita pelo bisneto de Akbar (século xvi), para persa,13 graças à qual a Europa, século e meio mais tarde, pela mão de Anquetil‑Duperron, entraria em contacto com a metafísica da Índia. Algumas décadas depois, Hegel, numa obra póstuma, publicada de 1837 a 1840, Lições sobre a Filosofia da História, fornece um resumo, em vinte e quatro páginas, sobre o Mundo Oriental, onde abundam erros, obscuridades e incompreensão, mas onde se encontram, entre as citações, trechos inteiros das Leis do Código de Manu, quase ignoradas, então, no Ocidente. Com Schopenhauer (1788‑1860) já se verifica o traslado, no seu livro O Mundo como Vontade e como Representação, de passagens completas dos Vêdas e fragmentos de Upanixads, não com o intuito documental (como era o de Hegel), mas como fundamento da reflexão sobre o Ser.
E no respeitante a Nietzsche (1844‑1890), que deve, em grande parte, o desenvolvimento da sua obra, como se sabe, a Schopenhauer, a influência da Grécia pré‑socrática e, sobretudo, do Oriente vêdico e pársi, não contribuiu apenas para os seus temas do Eterno Retorno e do Homem Superior, como também, e em igual medida, para a expressão iluminada da sua escrita, evocadora da Escritura: hinos, versículos e aforismos.
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A Upanixad da Grande Floresta, Upanixad maior, conforme a classificação de Shankara, que a ela dedica o seu comentário mais longo e eloquente, fala‑nos de Brahma – absoluto e incondicionado, que impregna o universo e, ao mesmo tempo, o transcende – e da sua identidade com átma, o nosso espírito individual (ver Glossário).
Assim, e por analogia com o esoterismo islâmico (o Sufismo, de que a doutrina neste ponto, como em muitos outros e apesar das grandes diferenças na forma é, no fundo, equivalente à doutrina hindu), todos os homens são Deus, se se considera a sua realidade essencial, mas Deus não é todos os homens, não porque Ele os exclua, mas sim porque a existência humana se anula perante a infinidade divina do Ser supremo.
Com efeito, a Upanixad da Grande Floresta expõe a revelação a que conduz a experiência iniciática da identidade mais alta e, em paralelo, a exegese lógica da «doutrina da não‑dualidade», Adwaïta‑váda; doutrina que não se fundamenta na redução de nenhum dos dois termos, espírito e substância, branco e negro: encara‑os a ambos, em simultâneo, na unidade de um mesmo princípio, em que estão igualmente contidos, não como opostos, mas sim como complementares, mercê de uma espécie de polarização que em nada afecta a essência do princípio comum.14
Sublinhámos acima a palavra lógica, porque avultam nesta Upanixad os processos dialécticos de argumentação, os quais, conforme comenta Shankara, apenas servem para esgotar todas as possibilidades de que a nossa mente é detentora. Uma vez esgotadas, a mente deixa de funcionar, por falta do alicerce discursivo, e a Realidade surge, sem véus de palavras, em todo o seu esplendor, no âmago do estudante da vida. E este, então, toma consciência de quem é, na verdade, pelo século dos séculos.
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A última realidade, Brahma, pode encarar‑se sob duas ópticas: substrato e sustentáculo do universo que manifesta (essência única que projecta a substância, as qualidades e os atributos universais), Brahma saguna, qualificado, portador de atributos; ou só existindo em Si, essencialmente sem atributos, nirguna, não‑qualificado, e sendo o universo uma aparência ilusoriamente vital.
Estas duas ópticas de Brahma não se contradizem, nem se inconciliam. A Upanixad da Grande Floresta, como, aliás, as Upanixads em geral, tenta mostrar, com especial incidência, que Brahma, mesmo quando devém o universo, nada perde da unidade do seu Ser: Ser e Devir enformam os dois estados de uma só e única Realidade. A imanência e a transcendência de Brahma são afirmadas, simultaneamente, como duas experiências, ambas legítimas, do Divino, conducentes à unidade da experiência irrepetível e plena: a identidade de essência entre o eu individual (djívátma), e a única Realidade, Brahma – Tat tvam assi, Tu és Isto.
Na tradição islâmica, os mestres sufis chamam à Unidade indivisível: al‑Ahadiyah derivado de ahad, um; e, à aparição da Unidade nos seus aspectos universais: al‑Wahidiyah, derivado de wahid, único, que vertemos por a Unicidade.
Unidade indivisível, suprema e incomparável (al‑Ahadiyah) não tem aspectos e não se apreende ao mesmo tempo que o mundo, porque é o objecto do Conhecimento divino, intuïtivo, imediato e indiferenciado. A Unicidade (al‑Wahidiyah), pelo contrário, correlaciona‑se sempre com o universo, porque, nela, o universo surge divino: em cada um dos seus aspectos, que são inumeráveis, Deus (Allah) revela‑se de maneira única, e todos os aspectos se integram na Sua natureza única e incondicionada. Esta distinção, entre a Unicidade e a Unidade divinas (que implica a complementaridade de uma unisíntese ambivalente) é análoga à vêdantica entre Brahma saguna, qualificado, e Brahma nirguna, não‑qualificado: a Unidade revela‑se simultaneamente indiferenciada e princípio de distinção. Como Unidade indivisível, al‑Ahadiyah, corresponde ao que na tradição hindu se designa por não‑dualidade (adwaïta); e como Unicidade, al‑Wahidiyah, é o conteúdo positivo de qualquer distinção, porque se deve à sua unidade intrínseca o facto de cada ser se distinguir de todos os outros, não só pelos seus limites, mas também pelas suas qualidades universais, aspectos possíveis da Essência divina imanente ao mundo.
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A Brihad‑Aranyaka Upanixad consta de seis lições (Adhyáyah) repartidas, duas a duas, em três Secções (Kánda), cada uma seguida da «genealogia» (vansha) dos mestres que a transmitiram de boca a ouvido:
– Madhu Kánda (Secção do Mel, Primeira e Segunda Lições), onde se versa a doutrina adwaïtica da Identidade suprema.
– Yádjnhavalkya Kánda (Secção de Yádjnhavalkya, Terceira e Quarta Lições), onde se explica, mediante a lógica, a Identidade suprema realizada, e onde se faz intervir a dialéctica com o intuito de provar, até à exaustão da mente, a vidência para além da unidade.
– Khila Kánda (Secção da Adenda, Quinta e Sexta Lições), onde se descreve maneiras de meditar. Esta última parte contém os grandes mantras que exprimem a metafísica oriental e o seu objectivo universal, inerente a todas as religiões reveladas e suas respectivas vias iniciáticas:
«Leva‑me do não‑ser ao ser;
Leva‑me da obscuridade à luz;
Leva‑me da morte à imortalidade.»
Obs.: Não inserimos as notas de roda-pé.
TERCEIRA LIÇÃO – página 71:
I
1. Om. Djanaka, rei de Videha, uma vez ofereceu um sacrifício, no qual muitas dadivas eram distribuídas com liberalidade pelos sacerdotes. Brahmanes de Kuru e de Panhtchala estavam ali reunidos. E Djanaka desejou saber quem era, entre eles o mais instruído na ciência sagrada. Por isso juntou mil vacas numa corte e pendurou, nos cornos de cada uma, dez moedas de oiro.
2. E disse: «Veneraveis Brahmanes, aquele que, entre vos, for o mais sábio, pode levar estas vacas para casa.» Nenhum Brahmane se atreveu. Então, Yadjnhavalkya pediu a um dos seus discípulos: . «Samashravas, meu filho, por favor, leva estas vacas para casa.» Ele levou-as. Os Brahmanes irritaram.se: . «Como e que ele se atreve a considerar-se a si próprio o melhor entre nos todos?» Estava também ali presente o chantre do rei Djanaka chamado Ashvala. Este perguntou a Yadjnhavalkya: . «És tu, na verdade, entre nós, o Brahmane mais sábio?» Yadjnhavalkya respondeu: – «Inclino-me perante o Brahmane mais sábio, mas quero estas vacas.» Por consequência o chantre Ashvala decidiu interrogá-lo.
3. . «O Yadjnhavalkya, se tudo quanto existe e vencido e subjugado pela morte, através de que meios pode o sacrificador furtar-se ao alcance da morte?» . «Através do sacerdote-chantre, através do fogo e através da voz. De facto, a voz é o chantre do sacrifício. E a voz é o fogo; e o fogo é o chantre, a libertação e a salvação da morte.»
4. . «O Yadjnhavalkya, se tudo quanto existe é vencido e subjugado pelo dia e pela noite, através de que meios pode o sacrificador escapar ao domínio do dia e da noite?» . «Através do sacerdote chamado Adhvaryu, através dos olhos e através do sol. De facto, o Adhvaryu é o olhar do sacrifício. E este olhar é o sol; e o sol é o Adhvaryu, a libertação e a salvação da morte.»
5. . «O Yadjnhavalkya, se tudo quanto existe é vencido e subjugado, de quinze em quinze dias, pela luz e pela escuridão do mês lunar, através de que meios pode o sacrificador eximir-se a esta influencia quinzenal?». «Através do sacerdote chamado Udgatar, através do vento e através da respiração. De facto, o Udgatar é a respiração do sacrifício. E esta respiração é o vento; e o vento é o Udgatar, a libertação é a salvação da morte.»
6. . «O Yadjnhavalkya, se a atmosfera não proporciona nenhum ponto de apoio, através de que meios pode o sacrificador alcançar o mundo celeste?». «Através do sacerdote Brahmane, através da mente e através da lua. De facto, o Brahmane é a mente do sacrifício. E esta mente é a lua; e a lua é o Brahma, a libertação e a salvação da morte. Eis a teoria. Agora a pratica.»
7. . «O Yadjnhavalkya, quantas estrofes dos hinos védicos vai cantar o chantre neste sacrifício?» . «Três.» . «Quais são essas três?» . «A estrofe introdutória de invocação, a estrofe que acompanha o sacrifício e a estrofe conclusiva de louvor.» . «E o que é que se obtém através delas?» . «Tudo quanto respira.»
8. . «O Yadjnhavalkya, quantas oblatas o sacerdote Adhvaryu vai oferecer neste sacrificio?» . «Três.â» . «Quais são essas três?» . «As que irrompem em chamas, as que fazem um grande barulho e as que caem e se dispersam.» . «E o que e que se obtém através delas?». «Através das que irrompem em chamas, obtém-se o mundo dos deuses, porque o mundo dos deuses é resplandecente como as labaredas; através das que fazem um grande barulho, obtém-se o mundo dos antepassados, porque o mundo dos antepassados transborda de clamores; e através das que caem e se dispersam, obtém-se o mundo dos homens, porque o mundo dos homens é inferior.
9. . «O Yadjnhavalkya, através de quantos deuses, o sacerdote Brahmane, sito do lado direito, protege, hoje, o sacrificio?». «Só através de um.». «Qual?» . «A mente. De facto, a mente é infinita e infinitos são todos os deuses. E através da mente conquista-se o mundo infinito.»
10. . «O Yadjnhavalkya, quantos hinos vai cantar, hoje, o sacerdote Udgatar, no sacrificio?». «Três.» . «Quais são esses três?» . «O hino introdutório de invocação, o hino que acompanha o sacrifício e o hino conclusivo de louvor.» . «Que significam os três hinos do nosso ponto de vista individual?» . «O hino introdutório e a respiração; o hino que acompanha o sacrifício o ar inspirado; e o hino conclusivo o ar que se propaga.» . «E o que é que se obtém através deles?» . «A Terra obtém-se através do hino introdutório, o Espaço através do hino que acompanha o sacrifício e o Ceu através do hino conclusivo.» E o chantre Ashvala calou.se.
II
1. Então, Djáratkárava Ártabhága perguntou: – «Ó Yádjnhavalkya, quantos órgãos dos sentidos e quantos objectos dos sentidos é que existem?» – «Oito órgãos dos sentidos e oito objectos dos sentidos.» – «Quais são esses oitos órgãos e esses oitos objectos?»
2. – «O nariz, na verdade, é um órgão dos sentidos; ele é percebido pelo objecto dos sentidos que consiste no odor: porque é através do nariz que se cheiram os perfumes.
3. A voz, na verdade, é um órgão dos sentidos; ela é percebida pelo objecto dos sentidos que consiste na palavra: porque é através da voz que se enunciam os vocábulos.
4. A língua, na verdade, é um órgão dos sentidos; ela é percebida pelo objecto dos sentidos que consiste no paladar: porque é através da língua que se distinguem os sabores.
5. A vista, na verdade, é um órgão dos sentidos; ela é percebida pelo objecto dos sentidos que consiste na forma e na cor: porque é através da vista que se contemplam as linhas e as tinturas.
6. O ouvido, na verdade, é um órgão dos sentidos: ele é percebido pelo objecto dos sentidos que consiste no som: porque é através do som que se escutam os timbres.
7. A mente, na verdade, é um órgão dos sentidos: ela é percebida pelo objecto dos sentidos que consiste na apetência: porque é através da mente que se concebem os desejos.
8. As mãos, na verdade, são um órgão dos sentidos: elas são percebidas pelo objecto dos sentidos que consiste no movimento: porque é através das mãos que se executam os gestos.
9. A pele, na verdade, é um órgão dos sentidos: ela é percebida pelo objecto dos sentidos que consiste no tacto: porque é através da pele que se sentem os contactos. Eis quais são os oito órgãos dos sentidos e os oito objectos dos sentidos!»
10. – «Ó Yádjnhavalkya, visto que tudo quanto existe é o alimento da morte, qual é, portanto, a divindade de quem a morte é o alimento?» – «O fogo, na verdade, é a morte: ele é o alimento da água. Quem sabe por esta via triunfa para além da morte repetida.»
11. – «Ó Yádjnhavalkya, quando morre um homem, os sôpros vitais abandonam o seu corpo?» – «Não, respondeu Yádjnhavalkya, juntam‑se e fundem‑se nele; o corpo incha e, cheio de ar, neste estado permanece imóvel.»
12. – «Ó Yádjnhavalkya, quando morre um homem o que é que não o abandona?» – «O seu nome: infinito, na verdade, é o nome, e infinitos são todos os deuses. Quem sabe por esta via conquista um mundo igualmente infinito.
13. – «Ó Yádjnhavalkya, quando a voz do homem que morre se une ao fogo, a respiração ao ar, o olhar ao sol, a mente à lua, o ouvido às regiões do espaço, o corpo à terra, o espírito ao éther, os pêlos do corpo às ervas, os cabelos às árvores, o sangue e o esperma à água – onde está, então, o homem?» – «Dá‑me a tua mão, meu querido Ártabhága, só a nós dois, a sós, é que compete o conhecimento desse assunto; não devemos falar em público.» E afastaram‑se para conversar. E, conversando, era da acção que falavam; e, louvando, era a acção que louvavam; na verdade, o homem torna‑se bom pelas boas acções e mau pelas más acções. E Djáratkarava Ártabhága calou‑se.
III
1. Então, Bhudjyu Láhyáyani interrogou‑o: «Ó Yádjnhavalkya, quando nós levávamos a vida errante de estudantes‑peregrinos, passámos por Madras e fomos recebidos em casa de Patantchala Kápya. A sua irmã estava possuída por um Gandharva. Perguntámos‑lhe: – Quem és tu? Ele respondeu: – Sudhanvan Ánguirassa. Interpelando‑o acerca do fim dos mundos, dissemos‑lhe: – Para onde foram os Párikxitas? Agora, faço‑te a ti, ó Yádjnhavalkya, a mesma pergunta: – Para onde foram os Párikxitas?»
2. Ele retorquiu: – «O Gandharva com certeza que vos disse: foram para onde vão todos aqueles que oferecem o sacrifício do cavalo.» – «E para onde é que eles vão?» – «Trinta e duas vezes o espaço percorrido pelo carro do sol num dia perfaz este mundo. Em seu redor, com o dobro da área, situa‑se o planeta Terra. E, em redor deste planeta, com o dobro da área, situa‑se o oceano. Na junção, das duas valvas da concha cósmica, há uma fenda tão estreita como a espessura duma navalha de barba ou duma asa de mosca. O fogo, na forma dum falcão, libertou‑os para o ar; o ar, assimilando‑os a si próprio, transportou‑os para onde estavam os oferentes do sacrifício do cavalo. Foi assim que o Gandharva glorificou o ar, porque o ar é simultaneamente a individualidade separada e a totalidade una. Quem sabe por esta via triunfa da morte repetida.» E Bhudjyu Láhyáyani calou‑se.
IV
1. Entao, Uxasta Tchakrayana, interrogou.o: . «O Yadjnhavalkya, explica-me Brahma de que o conhecimento é directo e imediatamente intuitivo, integrante do espirito que reside em tudo.». «E o teu próprio espirito que reside em tudo.» . «Como é isso possível, o Yadjnhavalkia?». «Esse teu espirito que respira, ele é que reside em tudo; esse teu espirito que se inala no sopro, ele é que reside em tudo; esse teu espirito que circula no sopro pelo corpo, ele é que reside em tudo; esse teu espirito que se eleva no sopro, ele é que reside em tudo. Sim, o teu espirito reside todo em tudo.»
2. Uxasta Tchakrayana disse: . «Tu indicas-me as coisas como se se tratasse de classificar objectos materiais: . Isto é uma vaca, isto é um cavalo. Não é o que eu quero. Quero que me expliques o Brahma que se revela, directa e imediatamente, por intuição, o espirito que reside em tudo.». «É o teu próprio espirito que reside em tudo.». «E quem é esse, o Yadjnhavalkya?». «Tu não podes ver o vidente da cosmovisão, tu não podes ouvir o escutador da orquestra, tu não podes pensar o pensador do pensamento, tu não podes entender o entendedor do entendimento. É o teu próprio espirito que reside todo em tudo. E o que não participa da sua natureza está votado ao sofrimento.» E Uxasta Tchakrayana calou-se.