IX Capítulo
O SACRIFÍCIO
Cada reino da Natureza (mineral, vegetal, animal, humano…)
tende a aproximar-se do reino imediatamente superior.
As pedras são o que há de mais antigo na Terra, são inertes,
insensíveis, não têm qualquer possibilidade de se mover ou de crescer.
Por isso, o seu ideal é tornarem-se plantas.
O ideal das plantas é tornarem-se animais. Elas estão enraizadas
e não podem deslocar-se nem ter sentimentos como os animais, por
isso desejam desarreigar-se do solo e mover-se. Mas é entrando no
corpo de um animal que as células das plantas poderão evoluir. Para
elas, não existe outro meio de evolução que não seja sacrificarem-
-se, deixando-se comer ou queimar.
O ideal dos animais é tornarem-se homens, o ideal dos homens
é tornarem-se Anjos e o ideal dos Anjos é tornarem-se Arcanjos ou
divindades.
Cada categoria de seres tem qualidades que a precedente não
possui. Por isso, cada uma tenta aproximar-se da seguinte, tenta
ultrapassar o grau já atingido. Antes de se tornar um Anjo, o homem
deve primeiro tornar-se um Mestre, pois o Mestre faz a ligação
entre o mundo dos homens e o mundo dos Anjos. Quando eu vos
disse, há dias, que o ideal do homem não é cumprir a vontade de
Deus, ficastes surpreendidos, pois isso parecia contradizer tudo o
que eu vos tinha dito antes. Na realidade, o homem está predestinado,
antes de mais, para estudar, conhecer, compreender. Só os
Anjos sabem cumprir a vontade de Deus. Portanto, cumprir essa
vontade é o nosso ideal longínquo; o nosso ideal atual, imediato, é
estudar: é isto que nos é pedido em primeiro lugar. O cumprimento
da vontade divina é para os Anjos.
Em búlgaro, “anjo” diz-se angule, “fogo” diz-se ogan, e “cordeiro”,
agné. Se se estabelecer uma relação entre as palavras ogan
e agné, compreender-se-á imensas coisas. Compreender-se-á por
que o Cristo, o Filho de Deus, foi comparado ao Cordeiro que devia
ser sacrificado antes da criação do mundo.1 Qual é a origem desta
tradição? No passado, quando se queria construir uma casa, era
costume, em certos países, regar os alicerces com sangue de um
cordeiro para que a casa ficasse sólida e protegida. Era para lembrar
a todos que, antes da Criação do mundo, foi necessário o sacrifício
de um cordeiro, de um ser vivo, para edificar essa construção sobre
bases sólidas.
O Cristo é o Cordeiro divino, o espírito do amor que atrai,
aproxima, sustenta, e é ele o amor que foi colocado como base da
Criação; foi ele que se sacrificou, que se imolou, que impregnou
a matéria deste edifício. Ele é a ligação, o cimento que mantém a
coesão do Universo. Em toda a parte, nas pedras como nas estrelas,
é esse amor que sustenta a estrutura. Se o amor desaparece, o nosso
corpo também começa a desagregar-se, pois é o amor que une todas
as células. O amor é o grande segredo do Universo.
Assim como o Cordeiro se ofereceu em sacrifício, também o
homem deve sacrificar-se. É por isso que os Iniciados nos dizem
para oferecermos o nosso corpo e o nosso coração em sacrifício
a Deus. Mas ainda não se compreendeu o verdadeiro sentido do
sacrifício, que representa a mais elevada das manifestações, a mais
nobre, a mais divina. Em parte alguma do Universo encontrareis
um ato que ultrapasse o sacrifício. Ele é o Ómega, a última letra,
não existe outra assim. Jesus veio para pronunciar esta última letra.
Outros virão depois dele, para realizar, para aplicar, mas não acrescentarão
nada que possa ultrapassar o sacrifício; o sacrifício continuará
a ser, eternamente, o mais sublime dos atos.
Muito poucas pessoas compreendem o que é o sacrifício.
Ouvimo-las dizer com frequência: «Eu sacrifiquei-me!» Mas terão
elas feito realmente um sacrifício? Vou dar-vos um critério para
poderdes fazer um juízo, mas tereis de começar por usá-lo apenas
em relação a vós próprios, e não em relação aos outros, pois, a não
ser que se seja um Mestre ou um clarividente, é impossível saber se alguém se sacrifica verdadeiramente ou se os seus atos contêm um
elemento egoísta, interesseiro. O verdadeiro sacrifício é um gesto,
um movimento, um pensamento ou um sentimento absolutamente
desinteressado. Se procurardes analisar-vos, constatareis que, na
maioria dos casos, as intenções calculistas da vossa natureza inferior
se introduziram furtivamente através daquilo que julgastes ser
um ato desinteressado. E é precisamente nisso que deveis trabalhar,
porque o homem só começa verdadeiramente a sua evolução no dia
em que consegue agir de maneira impessoal e não interesseira.
Observai uma criança. Ela exige, chora, grita, ameaça; não
pensa na mãe nem no pai, nem nos seus irmãos e irmãs. Quer que
toda a gente lhe obedeça, é terrível, por vezes um verdadeiro tirano!
Ela diz: «Então? Vocês estão aí para me ajudar, pois eu preciso de
crescer. Eu tenho as minhas ideias, quero tornar-me rei do mundo.»
E bate o seu pezinho, cerra os punhos, não quer aceitar explicações
de ninguém. Que força, que decisão!… Ela está resolvida a lutar
contra o mundo inteiro, sem refletir e sem obedecer. Naturalmente,
todos lhe perdoam e ficam junto dela para satisfazer os seus caprichos.
Mas, à medida que cresce, a criança vai-se apercebendo de
que o mundo não é exatamente como o imaginava e que exigem
dela pequenas coisas: trazer água ao avô velhote, prestar alguns
serviços; também a ensinam a lavar-se e a arrumar as suas roupas…
Mas isso ainda não são sacrifícios: as crianças obedecem para receber
em troca uma guloseima, porque lhes prometem sempre uma
recompensa se se portarem bem, e elas agem para receber essas
recompensas.
Um dia, a criança começa a ir à escola, encontra outras crianças
e começa a pensar. Apercebe-se de que deve mudar os seus
métodos, de que deve fazer concessões, porque é obrigada a relacionar-
se com essas outras crianças, a falar com elas, a brincar com
elas. De vez em quando, tem de tirar o lenço do bolso para enxugar
umas lagrimazitas; mas, mesmo que acabe por ceder, tem uma ideia
escondida na cabeça… Os anos passam e, um dia, ela pega numa
caneta e num papel bonito e começa a escrever um poema: jura
que está repleta de um amor impessoal… Mas não se deve acreditar
nisso, porque, no fundo, como eu vos disse, por detrás há sempre
uma ideia escondida, mesmo para ela.
Finalmente, essa criança torna-se um adulto; é a sua vez de ter
filhos, e é então que começa a fazer verdadeiros esforços, para os
alimentar, para os vestir e para os instruir. No entanto, se analisardes
melhor, vereis que esse sacrifício ainda não é lá muito puro
e contém motivações camufladas: os filhos crescerão e talvez se
tornem pessoas notáveis, os pais envelhecerão, ficarão expostos a
doenças e precisarão de apoio, etc… Salvo raríssimas exceções, no
fundo, existe sempre um certo calculismo.
Portanto, se fordes realmente longe na vossa análise, vereis que,
na realidade, o sacrifício não existe: há sempre um calculismo por
detrás; se não for um interesse material e grosseiro, será pelo menos
um interesse mais subtil: avançar, esclarecer-se, aperfeiçoar-se. A
diferença reside precisamente aqui: no segundo caso, esse interesse,
que é espiritual e puro, não traz qualquer prejuízo à pessoa e
até é um bem para o mundo inteiro, ao passo que, no primeiro caso,
o interesse é satisfeito em detrimento do dos outros.
Existem, pois, dois tipos de interesse: um diz respeito apenas ao
homem, à sua personalidade, e raramente é benéfico para quem o
rodeia; o outro é tão amplo, tão vasto, que abarca os interesses de
toda a coletividade. Este interesse é aceite pela Fraternidade Branca
Universal. Nunca sereis acusados se estiverdes cheios de interesse
pela sabedoria, pelo amor, pela paz, pela pureza, pela bondade,
porque estas virtudes nunca trazem prejuízos a ninguém: vós não
fazeis mal, não destruís, não perturbais a evolução coletiva do organismo
cósmico, pelo contrário. Mas, se manifestardes um interesse
puramente egoísta, ficai a saber que ainda estais longe da evolução
divina tal como os Iniciados a concebem. É preciso analisar tudo
o que se faz, tudo o que se pensa, tudo o que se sente; é preciso
submeter tudo a um exame e procurar o interesse que se esconde
por detrás. Vereis que muito poucas coisas resistirão a esse exame
e parecerão impessoais e puras!
E agora, se quiserdes saber em que casos é realmente o vosso
Eu superior que se manifesta, sabê-lo-eis muito facilmente, é uma
sensação que não pode enganar-vos. Sim, sabê-lo-eis pela sensação
que vivereis. Vós tendes, por exemplo, o desejo de dar alguma
coisa a um amigo… Pois bem, se, ao dar-lha, sentirdes uma alegria
pura e sem segundas intenções, é o vosso Eu superior que se manifesta. O símbolo do Eu superior é o Sol e o do eu inferior é a
Terra. Observai o Sol: ele dá, dá incessantemente, ao passo que a
Terra está sempre a receber. São estas as filosofias da Terra e do
Sol.2 É um fenómeno que encontramos em todos os domínios da
existência. Numa família, por exemplo: os pais estão sempre a dar,
eles alimentam, vestem, educam e instruem os filhos, e as crianças
recebem, apropriam-se, comem e sujam-se. Também aqui há a
Terra e o Sol! Mas, um dia, a Terra tornar-se-á um Sol, e a criança,
que mais tarde será pai ou mãe, tornar-se-á também, por sua vez,
um Sol.
E o discípulo? E o Mestre?… O Mestre é o Sol, porque o Mestre
dá ao discípulo, instrui-o, protege-o, procura educá-lo e enriquecê-
-lo espiritualmente, enquanto o discípulo é exatamente como a
Terra: recebe, apropria-se. Vós direis: «Mas essa filosofia do discípulo
é muito inferior!» Não, é absolutamente normal, é um estado
pelo qual ele deve passar inicialmente; depois, tal como a Terra,
tornar-se-á um Sol. Mas vós estais a pensar, certamente, que as
minhas palavras contradizem toda a astronomia, porque lestes algures
que, daqui a uns milhares de anos, a Terra vai arrefecer e depois
morrerá. Não, ainda se conhece pouco neste domínio. A astronomia
ainda usa fraldas e os astrónomos têm muito que aprender, pois, por
enquanto, só se focam na aparência das coisas, na sua casca.
A Terra não está a caminhar para o seu fim; na realidade, acontece
exatamente o inverso. A Terra é ainda uma criancinha, que
bebe, come, recebe, é uma menininha, mas irá crescer, tornar-se-á
cada vez mais calorosa e luminosa, e um dia será um Sol. É isto que
a verdadeira ciência nos ensina. Podeis acreditar nos astrónomos,
se quiserdes, mas nós sabemos bem o que dizemos. Mais tarde, a
Terra crescerá e tornar-se-á um Sol, porque a luz e o calor – isto
é, a sabedoria e o amor – que ela recebe continuamente do Sol
vão-se acumulando nas suas profundezas e transformando, pouco
a pouco, a sua matéria. Mas, claro, para isso será preciso esperar
ainda milhões de anos, pois essa transformação não pode ocorrer
instantaneamente. A Terra é um fruto que tem de amadurecer e,
quando o fruto estiver maduro, será comido por milhares de seres.
Sim, um dia a Terra tomar-se-á suculenta, apesar de, por enquanto,um vale de lágrimas e de sofrimentos, por ser ainda um fruto verde,
cujos sucos são amargos e indigestos.
O Sol faz continuamente um imenso trabalho sobre a Terra com
o amor (o seu calor) e a sabedoria (a sua luz); e a Terra, que absorve
e digere esse calor e essa luz, transmite aos seres que nela habitam
todas as novas qualidades que assim vai adquirindo. À medida que
a Terra evolui, a humanidade também evolui. Como é que isto é
possível? É possível porque os minerais e os vegetais se vão transformando
à medida que a Terra evolui. É a Terra que, no decorrer
dos séculos, introduz novas qualidades e virtudes nas pedras e nas
plantas, pois ela envia para as plantas as forças que lhe chegam vindas
do Sol. Deste modo, os homens e os animais que comem essa
vegetação e que estão continuamente em contacto com os minerais
e os vegetais são obrigados a transformar-se. A humanidade não
pode evoluir, pois, a seu belo prazer: a sua evolução depende da
evolução da Terra, está ligada a ela, encadeada com ela; se a Terra
não evolui, a humanidade também não pode evoluir, pois ninguém
pode separar-se subitamente da Terra e ir para o Sol. Só os seres
excecionais conseguem desprender-se desta dependência em relação
à Terra.
O discípulo é como a Terra: deve digerir o alimento que o
Mestre lhe dá e fazê-lo agir dentro de si para alimentar, por sua
vez, os minerais, as plantas, os animais e os homens. E onde se
encontram nele os minerais, as plantas, os animais e os homens?
São os sistemas ósseo, muscular, circulatório e nervoso. Sim, tudo
existe nele, e, tal como a Terra, o discípulo deve alimentar todos os
que em si habitam. Ele alimenta-os por intermédio do amor e da
sabedoria.
É claro que os cientistas nunca aceitarão esta teoria. Dirão: «O
que é que está para aí a dizer? Isso são só patetices! Segundo as
nossas pesquisas científicas, os planetas nascem desta maneira…
morrem daquela maneira…» Na realidade, se estudardes como as
coisas se passam na Natureza, se observardes nem que seja só uma
árvore – como se formam os rebentos, depois a flor, depois o fruto,
e como, no final, apenas fica o caroço ou a semente, que resume
toda a árvore –, ficareis a saber o que se passa nos planetas, porque
as leis que regem a vida dos planetas encontram-se exatamente reproduzidas na vida que há na Terra. Sim, não é obrigatório ir aos
planetas para os estudar, porque tudo está refletido na Terra, em
miniatura.
Só os grandes Iniciados possuem os meios para conhecer diretamente
a maneira como a vida se desenrola nos outros planetas;
eles reúnem-se e, pelo poder do pensamento e da palavra, projetam
um deles no espaço, enviam-no com a missão de ir fazer estudos in
loco, e este, quando volta, conta aquilo que viu. Em seguida, são
enviados outros para verificar e comparar as observações. Deste
modo, têm sido enviados para o espaço muitos seres e todos relataram
as mesmas informações, sem qualquer contradição. Foi desta
maneira que os Iniciados estruturaram uma ciência que mantêm
secreta. Para se ter acesso a essa ciência, só existe uma chave, uma
chave mágica: o sacrifício puro, o desapego puro; só eles podem
abrir a porta para tais segredos. Quem tiver um interesse malsão e
egoísta jamais poderá penetrar nesta ciência para conhecer a realidade
das coisas.
Foi precisamente após estas expedições no espaço que, ao
observarem a Terra, os Iniciados descobriram que tudo o que existe
no Alto tem a sua correspondência em baixo. Por isso Hermes
Trismegisto disse: «O que está em baixo é como o que está em cima
e o que está em cima é como o que está em baixo.» E quando Jesus
dizia: «Seja feita a tua vontade, assim na terra como no Céu»3,
repetia a mesma fórmula. A Terra está tão ligada ao Céu, que segue
os seus movimentos; ela é como a noiva que segue o seu bem-
-amado por toda a parte, ou como a criança que não deixa a mãe ir
a qualquer lado sem correr atrás dela. A Terra segue todos os movimentos
do Céu, todas as suas vibrações e trepidações, todos os seus
movimentos, mesmo os mais impercetíveis.
Deveis trabalhar sobre o sacrifício. Quando se age com desapego,
é-se invadido por uma imensa alegria que não se pode comparar
a nenhuma outra alegria na Terra. Vós direis: «Mas comer
é uma alegria, uma felicidade, um prazer; e também divertir-se,
fumar, beijar uma mulher ou um homem….» Isso é verdade, há alegrias
de todo o tipo, mas ainda não existe nenhuma que ultrapasse
a alegria do sacrifício: dar. Mas é preciso ser capaz de o fazer sem segundas intenções. Se sentirdes em vós uma reticência, isso quer
dizer que o vosso ato não é impessoal. Muitas pessoas fazem como
aquele homem que um dia rezava a São Nicolau; estava à beira de
um rio que queria atravessar e pedia: «Ó São Nicolau, se me ajudares
a atravessar o rio, dar-te-ei o meu cavalo.» Mas, quando chegou
ao outro lado, disse: «Bem, tu estás no Paraíso, não precisas de um
cavalo!», e guardou-o para si.
Promete-se, mas depois a mão treme, porque é difícil dar. É
com base nesta hesitação que podeis ajuizar a natureza exata dos
vossos atos: se, quando dais, sentis um pouco de tristeza e de desagrado,
é porque não estais a agir com desapego; se derdes com
uma alegria imensa, é o vosso Eu superior que se manifesta. Sim,
o Eu superior exprime-se através do desapego. Mas, por enquanto,
é inevitável que, no homem, o Eu superior e o eu inferior se manifestem
ambos; o Eu superior que dá, como o Sol, e o eu inferior
que recebe, como a Terra. Mas, um dia, o eu inferior tornar-se-á
como o Eu superior.
Quando um ser sabe privar-se em proveito de outro, isso prova
que ele deixou de ser criança. Se vos considerais mais velhos do
que os outros, se vos considerais mais evoluídos e mais nobres, eu
dir-vos-ei; «Então, demonstrai isso sacrificando-vos mais.» Uma
pessoa que sabe sacrificar o seu tempo, a sua saúde, o seu dinheiro
e os seus conhecimentos é alguém mais evoluído. Por isso, o discípulo
que passou anos a aprender junto de um Mestre deve, por sua
vez, tornar-se como o seu Mestre e dar continuamente o seu calor e
a sua luz. Então, a alegria que ele sente ao dar ultrapassa tudo, ele
não necessita de qualquer outra recompensa.
Todos se admiram com o facto de um Mestre trabalhar gratuitamente,
pois acham que isso é tempo perdido, é um desperdício de
forças que não tem sentido.4 Todos os que assim pensam aceitaram
a filosofia do eu inferior e, por isso, nunca encontrarão a felicidade
nem a alegria: não se pode encontrar a alegria e a felicidade
no egoísmo, isso é interdito. Vós julgais que, quando sacrificais
alguma coisa, a perdeis; não, pelo contrário, é nesse momento que
ela vos pertence. Apenas as coisas que sacrificastes vos pertencerão,
o resto nunca vos pertencerá. O bem que fizestes sacrificando-
-vos seguir-vos-á, correrá atrás de vós até ao fim dos tempos.
Só podereis saborear a alegria pura, profunda, se souberdes dar
sem pedir nada, sem esperar nada. Aliás, nessa circunstância por
certo também vos darão algo a vós e, se vo-lo derem, tanto melhor,
isso é normal, mas não deveis estar à espera de nada. No dia em
que fordes capazes de manifestar este desapego, sentireis uma alegria
imensa. Perguntai a uma mãe se sofre quando se priva de um
pedaço de pão para o dar ao filho. A sua expressão é a de um sorriso
divino!
Jesus sabia o trabalho que um dia viria a ser feito pelos discípulos
que comiam junto dele e bebiam as suas palavras; ele sabia
que esse trabalho seria tão impessoal e desinteressado quanto o seu,
pois conhecia o grande mistério da propagação dos germes. Cada
germe dá um produto da sua espécie; o sacrifício era o germe com
o qual Jesus alimentava os seus discípulos e ele não podia dar outro
resultado que não fosse o puro sacrifício. Quando uma mãe dá aos
seus filhos o exemplo do sacrifício, mais tarde eles são impelidos a
agir como ela. Como viram a maneira como ela os alimentava e os
tratava, como ela se levantava de noite sem se poupar, sem se lastimar,
mesmo que sejam egoístas, um dia serão obrigados a imitá-la,
pois a mãe será para eles o símbolo do sacrifício, que viverá eternamente
na sua alma.
E vós, ao viverdes junto de um Mestre que vos dá o exemplo do
sacrifício perfeito, num estado de felicidade e de alegria, sois obrigados
a refletir e a interrogar-vos sobre a origem dessa felicidade e
dessa alegria. Pois bem, elas vêm precisamente do seu desapego; e,
com o tempo, todos os seus discípulos se tornarão como ele, pois o
germe que o Mestre introduz neles é o do amor puro e reproduzir-
-se-á eternamente. É um germe que a Loja Negra nunca poderá
extirpar; ela fez tudo para o aniquilar em toda a parte onde havia
Escolas Iniciáticas e focos de amor desinteressado, mas não o conseguiu,
porque esta raiz é muito resistente. Portanto, o amor de um
Iniciado é como um germe que entra nos seus discípulos e, um dia,
eles serão como o Mestre.
Tentai, doravante, praticar atos desinteressados, e vereis que
brotará em vós uma nova fonte, pois a fonte é isso mesmo: agir
desinteressadamente. A fonte é também uma imagem do Sol. Os
outros representantes do Sol na Terra são o ar, que se deixa comer e beber, e a árvore, que dá frutos. É necessário, pois, que o discípulo
consiga tornar-se como o ar, como a fonte, como a árvore.
Se tiverdes em vós uma fonte, uma fonte jorrante, água a correr, é
porque o vosso Eu superior está presente e se manifesta. Mas, se
fordes secos e áridos, é porque o vosso Eu superior, o Sol, não está
presente, a fonte não está lá, a árvore não está lá, e assim vós não
podeis saborear a verdadeira alegria, pois a alegria é um dom do
Sol, da árvore, da fonte.
O segredo da alegria é dar de boa vontade e sem segundas intenções.
Aqueles que conseguem chegar a este ponto são os mais privilegiados:
compreenderam o sentido da vida, podem ser pais e
mães. Toda a gente sabe que existem pais, mães e filhos, mas nunca
ninguém pensou naquilo que se pode descobrir simplesmente nesta
imagem da família. Por que é que existem pais e mães? O pai, a
mãe e o filho são o resumo de todo um ensinamento. Os seres que
já estão maduros e podem dar aos homens frutos para eles comerem
são pais e mães. Mas aqueles que só pensam em si e não têm nada
para dar ainda são crianças, filhos. Eles podem ser pais ou mães no
plano físico, mas isso é apenas aparência e o mundo invisível não
os considera como tal.
Ser pai ou mãe é um ideal elevado que se deve procurar atingir,
mas ser uma criança, um filho, não é ideal nenhum. O ideal é ser
primeiro pai ou mãe, para depois se poder tornar um filho. Mas vós
ainda não conseguis compreender-me… Se fordes um fruto, depois
podeis tornar-vos uma semente ou um caroço, tendes esse direito;
mas, se ainda não vos tornastes um fruto e quereis vir a ser uma
semente ou um caroço, isso é impossível, pois as sementes só surgem
após o fruto e é preciso ser pai ou mãe para se poder dar esse
fruto, é preciso ser capaz de amar impessoalmente. O ideal é, pois,
tornar-se primeiro pai ou mãe para poder dar à luz o filho, isto é,
o sacrifício, o fruto impessoal do pai e da mãe esclarecidos. Todos
aqueles que não realizaram um ato impessoal ainda não deram à luz
nenhum filho, porque ainda não estão maduros.
Por volta dos treze ou catorze anos, o ser que até ali era criança
atinge o período da puberdade. A puberdade é uma fase de transformação
do ser humano: de egoísta e individualista que era, torna-se
agora capaz de produzir, quer dizer, de também fazer sacrifícios.
Antes de chegar à puberdade, enquanto criança, ele é incapaz disso,
é como uma terra estéril que apenas recebe. Mas, após a puberdade,
torna-se capaz de produzir frutos, fisicamente e psiquicamente. Por
isso, eu posso dizer-vos que, se não tiverdes em vós essa fonte que
brota, ou seja, se o vosso amor não for puro e desinteressado, tudo
secará e vós não proporcionareis nenhuma colheita, não tereis flores
nem frutos, sereis um deserto, uma terra árida. E quem é que
quer relacionar-se com uma terra árida? Ninguém, a não ser os
Iniciados e os ascetas.
E sabeis por que é que os sábios vão para o deserto? Pensais
que é para estarem sós, para terem paz. Não. Vou dizer-vos pela primeira
vez a verdade acerca deste assunto. É o mundo invisível que
os impele a ir para esses desertos, dizendo-lhes: «Vós sois fontes,
sois sóis. Ide, pois, a esses locais incultos para neles fazerdes correr
a vida e assim aí nasçam, um dia, uma cultura e uma civilização.»
Todos os Iniciados são mensageiros enviados pelo Céu para vivificarem
os locais onde outrora floresceram civilizações brilhantes e
cidades esplêndidas que, devido a erros cometidos pelos homens,
agora não são mais do que ruínas cobertas pelas ervas ou pelas
areias. Está tudo morto. Então, Deus envia essas fontes e esses sóis:
os Iniciados. Deus diz-lhes: «Ide, vivei lá, meditai e orai, para que
um dia a água corra novamente e essas terras voltem a dar frutos.»
Eis o motivo por que os Iniciados e os ascetas vão para os desertos.
Não é apenas para se afastarem dos homens, como imaginais; e
talvez nem eles próprios saibam a razão, talvez obedeçam apenas
a uma força secreta que os impele, mas eu estou a revelar-vos a
verdadeira razão.
Se me compreendestes hoje, por nada deste mundo renunciareis
à alegria que se sente quando se pratica uma atividade impessoal.
Bem podem tentar comprar-vos, dizendo: «Acaba com esse trabalho
desinteressado, vem mas é juntar-te a nós e terás dinheiro,
glória, poder!», que vós respondereis: «Estou-me nas tintas para o
vosso dinheiro, para a vossa glória e para o vosso poder. Não quero
perder a alegria imensa que me dá o trabalho desinteressado para
este ideal divino do verdadeiro sacrifício. O que quereis oferecer-
-me far-me-á perder uma alegria que, agora, é permanente em mim; não quero nada disso!» Todos podem verificar que aquilo que eu
estou a dizer é verdade.
A maioria das pessoas, quando dá qualquer coisa, quer que se
saiba, quer que isso venha nos jornais e que todo o mundo comente.
Mas aqueles que compreenderam o verdadeiro sentido do sacrifício
não estragarão a sua alegria dizendo: «Fui eu que vos dei isto…
Sem mim, estaríeis perdidos…». Analisai-vos e vereis que é impossível
alguém regozijar-se procedendo deste modo; mas, se fizerdes
o bem secretamente, tereis uma alegria imensa. Se nunca sentistes
semelhante alegria, isso não abona a vosso favor, pelo contrário,
prova que sois uma criança que ainda necessita de receber, de se
apropriar, uma criança que ainda nem sequer chegou ao estado de
puberdade: os germes ainda não estão formados, sois estéreis e não
se pode extrair nada de vós. As verdades eternas estão inscritas em
todos os fenómenos da vida. É a partir deles, mesmo dos mais insignificantes
acontecimentos da existência, que os Iniciados obtêm a
sua ciência e a sua filosofia.
Podereis usar todos os meios para procurar outras alegrias e
outras satisfações, mas não as encontrareis, porque fora do sacrifício
não existe felicidade. Porquê? Porque os outros prazeres, as
outras alegrias, não contêm estes três elementos: a força, o calor e
a luz. Toda a alegria que não vos reforce, não vos dilate e não vos
instrua é uma alegria efémera. E o mundo inteiro está mergulhado
nestas alegrias efémeras. As pessoas ainda não conhecem a alegria
inalterável que nada pode destruir. A verdadeira alegria, aquela
que nada nem ninguém pode retirar-vos, é a alegria do sacrifício,
a alegria de trabalhar para o Reino de Deus; eu não conheço outra.
Por isso, agora bebo nessa fonte que é inesgotável e que não deixa
um sabor a lamentos nem desgostos. Deus permite-nos beber nessa
fonte continuamente, todos em conjunto.
Se eu tivesse tempo, poderia revelar-vos ainda muitas coisas.
Uma das maiores tristezas dos homens é o facto de desaparecerem
sem deixarem filhos, e isso não acontece por acaso. No passado,
uma família que não tivesse filhos era, na opinião dos outros, uma
família perdida. Lede o Antigo Testamento! A maior alegria de um
pai, mesmo na hora da morte, é pensar que deixa filhos nobres e inteligentes. Ele tem orgulho nisso e, já no além, glorifica-se, pensando:
«Deixei sucessores!» Pelo mesmo motivo, a maior tristeza
de uma árvore é não dar frutos. Todas as árvores que não são árvores
de fruto se encontram num grau inferior de evolução e, se quereis
ser agradáveis para com uma árvore, dizei-lhe: «Minha querida
arvorezinha, desejo de todo o meu coração que te tornes uma árvore
de fruto.» Ao ouvir-vos, a árvore estremecerá de prazer, porque é
precisamente isso que ela deseja, o seu ideal é tornar-se uma árvore
de fruto. Por maioria de razão, acontece o mesmo com os grandes
Mestres. A maior alegria de um Mestre é ter discípulos bons e inteligentes
com os quais poderá apresentar-se perante os chefes da
Fraternidade Branca Universal, dizendo: «Eis os meus filhos e as
minhas filhas!»
Todos aqueles que não compreendem o valor do sacrifício
criam condições para terem tristezas e desgostos. Nós somos chamados
a ser pais e mães, se não for fisicamente, pelo menos espiritualmente.
5 Por isso, devemos preparar-nos, devemos ultrapassar o
estado da puberdade, devemos oferecer a nossa vida ao Céu e dizer:
«Doravante, trabalharei para o Reino de Deus e abandonarei os prazeres
e as alegrias passageiras que nada me trazem.» E far-se-á cada
vez mais sacrifícios: sacrificar-se-á o tabaco, o álcool, a carne, os
jogos… e muitas coisas mais… Porquê? Para libertar as forças espirituais
que estão limitadas e submetidas por esses hábitos, pois são
eles que impedem o homem de dar frutos. Observai uma árvore:
quando é invadida por insetos, ela não consegue dar frutos e é preciso
libertá-la deles usando inseticidas. Usai o mesmo método para
libertar o vosso corpo, o vosso coração e a vossa vontade de todos
esses prazeres sem sentido que estão a sugar o suco que deveria alimentar
o vosso Eu superior. Vós não conseguis dar frutos nem fazer
sacrifícios porque abrigais em vós seres que absorvem e esgotam
as vossas forças. Precisais de vos desembaraçar desses insetos e
dessas lagartas.
O livro da Natureza está aberto todos os dias perante vós e
podeis ler nesse livro as maravilhas da ciência e da sabedoria eterna
que o Criador escreveu em cada pedra, em cada ramo de árvore, em
cada estrela. Por que é que não os compreendeis? Por que é que os
vossos olhos não vos servem para ver nem os vossos ouvidos para ouvir? Porque estais ocupados com alegrias e prazeres que vo-lo
impedem. Quando decidirdes sacrificar essas alegrias e esses prazeres,
libertareis forças formidáveis, os vossos olhos abrir-se-ão e
vereis o que está escrito no livro da Natureza viva. É este o segredo.
Por vezes, encontrais-vos perante questões incompreensíveis
para vós e dizeis: «Não consigo compreender isto! Mas porquê? Há
pessoas que compreendem!» Respondei a vós próprios: «É porque
ainda tenho prazeres e alegrias inferiores que me tiram as forças.
Isso faz com que eu depois não as tenha para os meus olhos interiores.
» Não há outra explicação para a vossa incapacidade de ver.
É preciso que as vossas forças sejam libertas, de modo a poderem
ir para outras partes de vós e despertarem outras células. Mas as
pessoas são ignorantes e dizem: «Eu vou continuar a alimentar este
prazer, porque, se renunciar a ele, morrerei privado desta alegria.»6
Que ignorância! Não imaginais as alegrias que, pelo contrário, vos
esperam! Quanto mais o ser humano renuncia às alegrias passageiras,
mais invadido é pela verdadeira alegria. Quem conseguir
compreender o que eu vos revelei hoje mudará completamente a
sua vida, pois não se trata apenas de palavras, é a realidade. Por
enquanto, nem os homens da ciência nem os filósofos conhecem a
verdadeira origem das nossas fraquezas e dos nossos vícios e dão
a esse respeito toda a espécie de explicações que não são corretas.
A explicação das nossas fraquezas está no facto de nós alimentarmos
seres que nos esgotam. É preciso, pois, libertamo-nos desses
indesejáveis.
Mas como é que as pessoas compreendem as coisas?… Um
patrão dizia, um dia, ao seu criado de quarto: «Celestino, repare
nesses sofás: estão cheias de poeira! – Oh! isso não me surpreende
muito, senhor, há três semanas que ninguém lá se senta.» Portanto,
o criado estava à espera de que alguém viesse sentar-se nos sofás
para fazer desaparecer a poeira. É uma explicação esquisita, mas há
muitas explicações na vida que são semelhantes a esta.
Quando um jovem diz à sua amada: «Amo-te tanto que seria
capaz de morrer por ti», isso é uma estupidez, pois o que ganharia
ela se ele morresse? E ele, o que ganharia? Ele deveria dizer:
«Viverei para ti.» É deste modo que se deve compreender o amor.
Mas as pessoas têm medo do amor impessoal, porque o confundem
sempre com o pesar, a tristeza, a morte. É uma maneira de
compreender que está errada. O amor é a vida, e no amor puro está
contido tudo, não existe nenhuma privação. Há pessoas que têm
pena de mim e dizem a meu respeito: «Coitado! Priva-se de tudo!»
Mas eu é que tenho pena delas, e duplamente, pois, na realidade,
são essas pessoas que se privam de tudo, ao escolherem apenas um
pequeno número de prazeres passageiros. Isso é que é a verdadeira
privação, ao passo que na minha vida há de tudo, eu tenho muito
por onde escolher.
Eu não ando a pregar a morte, mas sim a vida, a vida bem compreendida,
evidentemente. É a luz que traz a vida e o amor. O Céu
não pede que nos matemos, mas que afinemos os nossos prazeres,
que os tornemos mais subtis, mais puros. E mesmo aqueles que
passam o seu tempo mergulhados nos livros, pensais que eles são
muito evoluídos? Não é lendo os livros das bibliotecas que se faz as
maiores descobertas, mas sim lendo livros vivos e sobretudo o seu
próprio livro. Sim, o melhor livro está connosco, em nós, mas, por
enquanto, as pessoas leem nas bibliotecas e compreendem cada vez
menos. O homem não foi enviado à terra para se ficar pelas bibliotecas
e esquecer tudo o resto. A sua mulher e os seus filhos são
magníficos livros, mas ele nunca os lê. Lê enciclopédias e revistas,
passa os dias a sublinhar passagens e a tomar notas, gosta disso;
no entanto, continua infeliz. Porquê?… Mas não me interpreteis
mal ao ouvir-me falar assim sobre os livros e as bibliotecas. Eu
conheci uma mulher muito rica que nunca lia com medo de estragar
os olhos! Não é isso que eu vos aconselho; não ler absolutamente
nada também não é bom.
Eu nunca vos disse que devíeis reduzir ou suprimir as vossas
alegrias e os vossos prazeres, mas apenas que deveis afiná-los ou
substituí-los por alegrias e prazeres mais elevados. E, entre todas
as alegrias que existem, a maior não é ouvir música, pintar ou ler,
mas sim sacrificar-se e trabalhar desinteressadamente para o Reino
de Deus. Não existe maior alegria, mas o verdadeiro sacrifício e a
verdadeira alegria são apenas para os seres mais evoluídos.
Sèvres, 2 de maio de 1945