CIÊNCIA: UMA GERADORA DE PRODUTIVIDADE E DE PODER
A ciência, força produtiva determinante, está, hoje, a tornar-se dominante e a contribuir decisivamente para a progressiva libertação do homem das tarefas manuais. E paralelamente a
este processo, intimamente ligado a ele, o desenvolvimento do conhecimento científico e da actividade técnica também no sentido de uma progressiva libertação do “já feito pela natureza”,
isto é, da utilização a um nível cada vez mais profundo e elementar da Substância da Natureza. Mas isto não quer dizer que a natureza deixe de ser o único e verdadeiro instrumento na actividade humana, se bem que um instrumento utilizado cada vez mais em abstracto, a um nível cada vez mais elementar.
Que distância percorrida entre o simples recolector até ao desenvolvimento da capacidade de utilização da natureza como meio de produção agrícola, até ao prolongamento artificial do quadro
periódico de Mendeleiev, ao transistor, etc.. E o que agora está em jogo com o desenvolvimento da Tecnorgânica, é a tentativa de substituição ao nível da própria alquimia da natureza na transformação dos elementos, quero dizer, o desenvolvimento da capacidade de utilizar a natureza num estádio tão elementar da sua estruturação que mais pareça uma manipulação técnica directa de uma espécie de proto-matéria, ou da realidade do espaço e do tempo manifestados quase como categorias Kanteanas.
E é da capacidade de penetrar em profundidade na Substância da Natureza que deriva a explosão de possibilidades. Com efeito, quanto menos pesada for a estrutura mais flexível será a
sua utilização. E esta é a chave do progresso científico-técnico.
Quanto mais acabada está a estrutura que pretendemos utilizar menos possibilidades temos de a moldar. Quanto mais embrionária for a estrutura a manipular maiores potencialidades temos
de diversificar a sua aplicação, a sua manipulação técnica, ou de influir no seu processo. No limite, o homem tornar-se-ia senhor absoluto da sua existência se pudesse criar o seu próprio meio ambiente sem necessidade de recorrer a nenhum estádio de estruturação da natureza, o mais elementar que seja, se pudesse criar a partir do nada. De qualquer modo, é nesse sentido que se progride. Infinitamente, é claro. Assim, o homem primitivo tornou-se capaz de utilizar no concreto o que a natureza lhe punha mais à mão, e, então, pegou num pau e numa pedra e fez um machado. Mas, hoje, o homem chegou à manipulação atómica e ao microprocessador, e pretendemos, com o desenvolvimento da Tecnorgânica, que venha a integrar na sua actividade técnica a própria “Técnica” da Natureza.
Que progredimos por imitação criativa da natureza é um dado adquirido. Com efeito, utilizando sempre algum estádio de estruturação da natureza como objecto da nossa actividade,
o progresso técnico, se bem que nunca negando o papel do património científico-técnico já cristalizado, depende fundamentalmente do progresso teórico e este da capacidade de abstracção-
generalização do homem, ou seja, do desenvolvimento do conhecimento, da consciência humana. Na realidade, na base de todo o nosso processo de desenvolvimento científico-técnico está sempre o progresso na nossa capacidade de abstracção-generalização, e, assim, a mais concreta actividade humana, ou a prática que os indivíduos mais mentalmente indigentes tanto
sobrevalorizam, constitui sempre um momento de cristalização, uma “materialização” da ideia, a ideia tornada ciência, tornada técnica, tornada estrutura política, etc.. Por isso, toda a actividade humana, toda a realidade do âmbito do Ter, é meramente conjuntural relativamente ao desenvolvimento do Ser.
É certo que não se nega o papel da realidade já existente e cristalizada, do estádio de desenvolvimento presente como ponto de partida, até porque não há hiatos num processo evolutivo e porque toda a estrutura representa um ponto de encontro entre ambos os sentidos do movimento, mas essa realidade tende muito mais a resistir activa ou passivamente à mudança do que a assumir uma posição revolucionária e de sujeito transformador.
A actividade humana resulta do encontro fecundo entre a criatividade e algum estádio da Substância da Natureza. E uma das consequências mais directas disto, no plano político, é a tomada de consciência de que a força determinante do progresso humano reside na criatividade, na ideia nova, na informação que nos guia a acção. E se sempre assim foi, hoje, é-o com muito mais evidência porque se tende a acelerar o processo de “materialização” da ideia criativa, porque à medida que a sociedade se complexifica e progride científico-tecnicamente mais a História se voluntariza. E quanto mais a História se voluntariza, mais potencialidades se adquire de acelerar ainda mais o processo de “materialização” da ideia criativa, da sua cristalização científica, técnica, etc., e de reduzir continuamente o espaço de mediatização entre a informação transformadora e o objecto a transformar; até porque vamos agindo, científica e tecnicamente, etc., a níveis cada vez mais profundos da Substância da Natureza, vamos partindo de estádios cada vez mais embrionários da
natureza, de estádios em que ela se estrutura mais elementarmente, acrescentando-se nessa medida o número de possibilidades, evoluindo nessa medida a explosão de possibilidades de
diversificação da actividade humana e de intervenção da sua criatividade. Enfim, é cada vez mais evidente o papel da criatividade, da informação, também à medida que se desenvolvem as potencialidades científico-técnicas.
Quanto mais nos substituímos à natureza, quanto mais a utilizamos a níveis crescentemente elementares e fazemos nós mesmos o que, antes, teria de ser feito pela natureza, quanto
mais dependemos do meio técnico e menos do meio natural,mais nos tornamos sujeitos de nós mesmos. Nessa medida ohomem é cada vez mais um produto da sociedade, das suas
potencialidades científico-técnicas, afinal, da sua própria criatividade.
E a revolução científico-técnica que perspectivamosterá inevitavelmente repercussão, como sempre aconteceuao longo do processo histórico, ao nível das estruturas político-sociais. E não é por mera casualidade que nos limites daTeoria do Campo Unitário se fala de Sistema Social Orgânico
ou Sofiocracia. A revolução científico-técnica reflectir-se-á natransformação das estruturas político-sociais.
À medida que de determinante a ciência como força produtivase for tornando também dominante, o papel da informação,da criatividade, tenderá a ser reconhecido na prática política como uma força transformadora determinante, até pela auto-consciencialização dos homens do seu próprio carácter
de fontes de informação, nomeadamente dos que mais têm a beneficiar com esse reconhecimento, dos que com mais propriedade se podem considerar sujeitos culturais, e particularmente dos mais ligados profissionalmente à actividade científica.
Quando se considera que os autênticos criadores espirituais de cultura constituem o suporte do mundo, é na medida em que representam uma verdadeira fonte de informação, de criatividade. Mas essa informação ainda não é uma força produtiva directa, isto é, directamente aplicável na estrutura
científico-técnica. Ora, essa força produtiva cada vez mais dominante e directa é, apesar de desempenharem já um papel de segunda ordem, a que representam os cientistas e cuja importância
no actual estádio de desenvolvimento da sociedade não cessa de acrescer-se. No entanto, devemos ter sempre em consideração que a escala evolutiva é infinita e que há sempre alguém que nos transcende.
Ninguém, nenhuma força, representa o Fim da História. Mas no actual estádio de desenvolvimento da sociedade a força da ciência apresenta-se cada vez mais directamente determinante e dominante, pelo que a intelectualidade em geral e os sectores ligados à investigação científica em
particular se apresentam cada vez mais importantes numérica e qualitativamente, e com tendência a auto-consciencializarem-se da exploração a que são sujeitos. Afinal, enquanto produtor de informação, o intelectual em geral e o cientista em particular são explorados até pelos que já se consideravam explorados eles próprios. Até porque se o operário fabril produz mercadorias concretas, o produtor de informação produz produtividade. Assim, naturalmente, a “intelligentsia”, muito mais que uma mera reivindicação de redistribuição da riqueza onde já conquistou uma posição
elevada, tenderá a lutar pela redistribuição do poder.
A intelectualidade tenderá a reivindicar-se como centro de decisão, e a exigir no plano político-social a adequação das estruturas aos seus interesses.
Mas, agora, não estamos perante uma classe social perfeitamente delimitada, como é o caso dos que vendem força de trabalho mecânico. Agora, a informação compreendida como força produtiva, as gradações são potencialmente infinitas quando se trata de reconhecer a sua origem, a sua propriedade.
Por outro lado, há a informação directamente utilizável na esfera produtiva, e a informação ainda mais determinante mas que ainda não obteve o reconhecimento social. Por isso, aqueles que mais determinantemente contribuem para a evolução da sociedade nunca são reconhecidos na sua época.
De qualquer modo, os menos determinantes dos detentores de informação, num momento em que esta tende a apresentar-se como força produtiva dominante, já implica profundas transformações no plano económico e político.
Assim, os sectores profissionais detentores da chamada qualificação científica, sendo já eles próprios uma espécie de exploradores da criatividade alheia, não constituindo na realidade as autênticas fontes de criatividade, representando uma posição intermédia no processo de cristalização da informação, têm, apesar disso, uma potencialidade revolucionária muito grande e constituem um elo num processo em que se não podem saltar etapas.
Mas porque, quando se trata de reconhecer politicamente a informação como base produtiva da sociedade, com todas as consequentes exigências de transformação social, as gradações são potencialmente infinitas, não podemos encarar o desenvolvimento político-social das nossas sociedades actuais à base de revoluções idealizadas sobre planos previamente estabelecidos. Além do mais, a criatividade é, ela própria, a principal força revolucionária a ter em consideração. Não podemos sequer teorizar à boa maneira marxista, porque sem uma classe perfeitamente delimitada e inteligida como a redentora tudo se torna muito mais complexo.
E agora, também não se trata de uma mera substituição de um sistema social ao nível da forma de gestão por um outro que se apresenta como complementar, não se trata de uma simples
alteração ao nível da apropriação na esfera produtiva e de imobilização das rédeas do poder político numa estrutura especializada no seu exercício, que é o que o socialismo propõe frente ao
capitalismo. Agora, trata-se de superar ambos estes sistemas por um outro que representa uma ruptura ao nível mais profundo do que se gere, isto é, da base produtiva e da força produtiva e
que tenderá a estruturar-se progressivamente. O Sistema Social Orgânico é um processo, até porque se relaciona com o próprio desenvolvimento da sociedade a todos os níveis, da ciência à técnica, à organização político-social, e que, portanto, transcende o “negócio” de ideologia que representam as alterações no plano da forma de gestão; é um processo também porque não pode
apoiar-se numa hipotética classe redentora, já que a qualidade de detentor de informação não é privilégio de ninguém pelo menos numa perspectiva global e genérica.
Agora, trata-se de teorizar minimamente, quero dizer, somente a um nível estrutural, a evolução para uma sociedade em que a posição do indivíduo tenda progressivamente a ser
determinada pela sua qualidade de detentor de informação e criador de informação. Assim, trata-se de um processo que não apela a uma vanguarda pré-determinada, de que ninguém em rigor é o intérprete privilegiado, e que tende a deslocar a dualidade explorador/explorado para o âmbito da contradição entre o homem e o meio técnico. Portanto, quando muito pode haver sectores profissionais em circunstâncias de mais facilmente se auto-consciencializarem, mas nunca numa posição de exclusivos intérpretes do movimento. É o caso particular
dos chamados detentores de qualificação científica. E é nos Estados Unidos da América que mais se começa a fazer sentir o problema, desde o manager ao professor universitário, do investigador laboratorial ao engenheiro, às profissões que eram liberais. E eles começam a questionar sobre se afastado do poder o capitalista tradicional, porque destituído de qualificação para tomar decisões, ele não acabará por ser também afastado do capital, ou melhor, se perdido o poder que deriva
da informação ele não perderá também o poder derivado da posse do capital, ou ainda por outra, se o poder que dá a informação não desloca para si, não atrai a si, o poder que dá
o capital. Questionar-se-á sobre se o detentor do capital não continua a ser o patrão que dá trabalho e que paga trabalho,quer esse trabalho seja mecânico ou conhecimento. Na realidade a diferença é enorme.
Quando o detentor de capital emprega um trabalhador desqualificado continua a deter o poder, quando emprega um trabalhador qualificado divide o poder com ele. É certo que continua a deter o poder sobre o capital. Mas até quando? Ora, quando o detentor de capital perde capacidade de decisão ao nível do poder que deriva da qualificação científica perde o poder determinante, o que é determinante no processo de desenvolvimento da sociedade no estádio actual; e acabará por
perder, a muito longo prazo que seja, o poder sobre o capital.
Porque o capital não é o poder em si mesmo como por vezes se pretende fazer crer, ele é somente uma forma específica de poder.
E não é o capital que atrai determinantemente o poder, é, antes, o poder que atrai o capital. (Aliás, o capital e o poder político somente coincidem e tendem a sobrepor-se na sociedade burguesa especificamente capitalista.) Não foi por serem ricos que os burgueses conquistaram o poder; foi porque representavam o poder ascensional que acabaram por fazer sobrepor o capital e o poder político engendrando a sociedade burguesa capitalista. E se o burguês tradicional ainda pode negociar um grande empório a seu bel prazer, isso está, no entanto, em perspectivas de mudança, mesmo nos USA. A não ser que as nossas sociedades venham a sofrer alguma inflexão de cariz fascizante.
E há também alguns sintomas disso. Mas quando a contradição entre a “intelligentsia” e a burguesia tradicional se agudizar é que se há-de ver se há um salto em frente ou uma regressão para
posições de tipo fascista. É claro que principalmente a sociedade americana está a entrar numa era pós-industrial em termos científico-técnicos. E, portanto, também a apontar para o pós-capitalismo e socialismo em política. Mas não é líquido que isso venha a acontecer necessariamente, que essa adequação política venha a processar-se de facto. Assim, algo do género do fascismo, mesmo na América, é uma hipótese, ainda que remota, a não desconsiderar. Mas também não é a forma de gestão que determina a evolução do que é gerido.
Aliás, as revoluções que enchem a boca aos ideólogos e aos políticos representam só momentos de ajustamento político às verdadeiras revoluções. É assim que depois da revolução neolítica, da enorme revolução que representou a utilização da terra como meio de produção, só a revolução científica em que se baseia a civilização moderna constituiu outra grande revolução. O esclavagismo e o feudalismo são as formas individualista e sistémica de gestão, numa sociedade em que a terra é o meio de produção fundamental. E como momento de cristalização cultural da revolução científica, desenvolve-se também a sociedade de tipo industrial sob a forma de gestão mais individualista
– o capitalismo, e a forma mais sistémica – o socialismo. E a Revolução Leninista de Outubro não representou mais que a Revolução Francesa dos povos de características sistémicas, geralmente
orientais. O socialismo é a forma de gestão sistémica de uma sociedade industrial. E nenhum dos termos de um binómio contraditório se assume como revolucionário relativamente ao seu oposto, nem o feudalismo frente ao esclavagismo, nem o socialismo perante o capitalismo. O senhor feudal e o servo da gleba são o correspondente sistémico ao dono e ao escravo, numa sociedade em que igualmente o meio de produção básico era a terra. Tampouco, o Estado numa revolução socialista assume mais que o papel da burguesia industrializadora no sistema capitalista.
Assim, a Revolução Leninista não significa uma ruptura com o capitalismo mas sim com o feudalismo czarista. Por isso, ela não conseguiu implantar-se nos povos onde já havia sido feita
a revolução industrial, pois que ela representava a outra maneira de fazer a revolução industrial nos povos de características sistémicas relativamente aos quais se assumiu como a outra face da
Revolução Francesa. No entanto, o atraso que a oriente se verificou relativamente à revolução industrial tem uma contrapartida – a profunda influência espiritual sobre o ocidente.
Na verdade, de uma forma muito genérica evidentemente, as ideias germinam a oriente e vão ganhando “força material” enquanto perdem em “força espiritual” à medida que se deslocam
para ocidente. Depois, voltam a repercutir-se a oriente numa espécie de onda de choque. Por exemplo, a própria revolução científica renascentista que conduziu à revolução industrial e,
politicamente, ao capitalismo a que no oriente se respondeu com a alternativa socialista; Assim como os árabes que trouxeram à Península Celtibérica parte das condições indispensáveis
para que os portugueses se lançassem ao mar, mas foi Portugal que fez os Descobrimentos Marítimos. Etc.. E quando Mao Tsé Tung proclamou que os ventos (socialistas) de leste predominavam sobre os (capitalistas) de oeste, enganou-se, claro, nos intentos que tinha em mente; mas estava involuntariamente certo a outro nível. Enganou-se, porque só agora é que os seus herdeiros ainda procuram levar a revolução industrial a um bilião de chineses; mas estava certo a outro nível, porque, falida a civilização renascentista, o ocidente está tentando mergulhar
de novo em profundas raízes culturais, e é sobretudo a oriente que elas se encontram sob as cinzas. E, deslocando-se para ocidente, elas deixarão de estar ao serviço do misticismo tendendo a cristalizar científica, técnica e politicamente, tenderão a cristalizar civilizacionalmente ao nível do Ter. A própria Teoria do Campo Unitário se enquadra neste processo, nesta dinâmica. Aliás, à perspectiva científica que, por exemplo, a Alquimia ganha com a Teoria do Campo Unitário corresponde um enorme empobrecimento estético e místico. Lamentável, mas inevitavelmente!
Está-se começando a superar o sistema capitalista no ocidente no quadro de uma ruptura civilizacional, isto é, está-se procurando superar a civilização renascentista e a revolução
industrial. Mas é evidente que, para além das inter-influências meramente conjunturais entre os sistemas, superar o capitalismo é também superar o socialismo, é superar ambas as faces da mesma moeda, da mesma civilização. Porque o socialismo, em termos civilizacionais e em termos de revolução industrial, nunca passou de uma imitação sistémica do capitalismo. E pretender,
nestas circunstâncias, que pelo desenvolvimento das forças produtivas o capitalismo se transformaria em socialismo, foi uma ilusão que a História já desfez a todos os que não sejam de todo imbecis. Compreende-se que há cem anos se tivesse confundido o que era uma questão de forma com uma mais profunda questão de conteúdo. Mas, hoje, é perfeitamente claro que o socialismo representa somente a outra forma que os povos marcadamente sistémicos e os povos coloniais, em que o Estado precisa suprir a inexistência de uma burguesia empreendedora, podem utilizar para chegar ao mesmo conteúdo que é a industrialização. E verificou-se ser também uma forma de esses países recuperarem mais rapidamente do atraso, evitando os desperdícios de quem teve de inventar o caminho.
Por isso, aliás, a revolução industrial foi tão longa e tão penosa na Inglaterra. Na realidade, nem o capitalismo é o futuro do socialismo, nem este é o futuro daquele; o futuro é dos que estão procurando uma outra civilização, indiferentes ao combate que os situacionistas travam com as mesmas armas, com os mesmos instrumentos civilizacionais. E a História demonstrou, e a ciência reforça, que a vitória nunca é daqueles que aos problemas novos respondem com velhas receitas; mas dos que procuram e encontram novas respostas. E que esperanças pode ainda ter o velho marxista relativamente aos países capitalistas desenvolvidos, quando a classe operária já entrou em contínua regressão numérica? Dirão que as profissões ditas liberais se proletarizam? Mas, no limite, a contradição fundamental da sociedade tenderá a situar-se entre o elemento humano e o elemento
técnico. Apelarão, então, à revolta do elemento técnico?
Quando o meio de produção básico era a terra, o sistema social era ou esclavagista ou feudal conforme a forma de gestão mais individualista ou mais sistémica. Depois, na sociedade industrial,
os sistemas sociais evoluíram para o capitalismo e para o socialismo como formas de gestão mais marcadas pela exploração do homem pelo homem a título individual, ou pela exploração a título colectivo, pela exploração do homem pelo sistema. Agora, tende-se para um sistema social pós-capitalista e pós-socialista à medida que a informação científica se vai tornando força produtiva
directa. Mas a contradição entre o carácter individualista e o carácter sistémico sempre tem vindo a diminuir de intensidade com a evolução, e os sistemas são cada vez menos puros e mais
interdependentes. A forma de gestão, já que a diferença entre sistemas sociais paralelos e complementares é sempre uma questão meramente formal, vai-se aperfeiçoando com as múltiplas inter-influências. Por isso, podemos considerar que o pós-capitalismo e o pós-socialismo (se bem que os sistemas sistémicos tendam a evoluir rapidamente durante curtos períodos revolucionários a
que se seguem longos períodos de imobilismo social) tenderão a englobar-se já num sistema unitário – o sistema social orgânico.
E consideramo-lo jogando com os condicionalismos multiformes da tendência à planetarização, e, fundamentalmente, com os determinismos da ascensão da intelectualidade ao poder independentemente do actual sistema social – capitalista ou socialista – de partida. No entanto, até porque as contradições nunca se resolvem em absoluto, continuarão a manifestar-se num sistema
social orgânico cambiantes mais individualistas ou mais sistémicas, continuarão a verificar-se pequenas, cada vez mais pequenas, diferenciações na forma de gestão de cada sociedade.
E a tendência para a unificação planetária, inclusivé, para o Estado Planetário, reivindicada por problemas gerais à escala da Humanidade inteira, encarregar-se-á de passar esta mera contradição
de forma, então, mais atenuada já, para segundo plano.
E, assim, porque todo o planeta vai evoluir para um sistema social orgânico independentemente da actual vivacidade da contradição entre capitalismo e socialismo, porque um sistema social orgânico não assenta numa mera convergência horizontal (a Teoria do Campo Unitário não é uma mera teoria de convergência entre filosofias idealistas e materialistas, tampouco o Sistema Social Orgânico o é entre capitalismo e socialismo) entre os actuais sistemas mas pressupõe a própria superação da civilização renascentista que determinou a revolução industrial, porque não vai estruturar-se apelando directamente ao papel de qualquer classe social perfeitamente individualizada e inteligida como redentora, vê-se melhor que não possamos prescrever o receituário da edificação do sistema social orgânico. E mesmo que pudéssemos não quereríamos, até porque a era dos gurus salvadores já passou. E também não valeria a pena porque os
gurus falham sempre, e, neste caso, ainda mais porque o sistema social orgânico pressupõe a liberdade e a criatividade, e também dificilmente poderia ser estabelecido por uma vanguarda
revolucionária, até pela exigência de redistribuição do poder que é exactamente o que as vanguardas costumam guardar para si próprias como uma espécie de preço que as massas pagam
aos salvadores. Porque um sistema social orgânico só pode afirmar- se numa sociedade em que todos e cada homem tenham tomado consciência de que eles próprios constituem a matéria-
prima mais preciosa, a única absolutamente indispensável, que cada homem é insubstituível. Na verdade, o Sistema Social Orgânico perfeito seria o de uma sociedade hierarquizada em termos de repetição perfeita da própria hierarquia natural, em que a posição do homem na sociedade, melhor dito, do indivíduo na hierarquia político-social, se determinasse pelo seu estádio evolutivo em termos de Ser, isto é, uma sociedade em que o Ter coincidisse absolutamente com o Ser. Bom, mas esse seria o Sistema Social Orgânico Absoluto (que não é o mesmo que utópico no sentido marxista em que utopia significa não previsão de desenvolvimento, não previsão dos mecanismos necessários
à sua realização). E se o Absoluto é sempre o nosso Mítico objectivo, no “dia a dia” contentamo-nos com muito menos.
O problema que com mais acuidade cada homem tem de colocar, hoje, a si próprio, tanto a oriente como a ocidente, é a questão de saber quem decide por si e sobre o quê. Porque numa sociedade em que se desenvolvem exponencialmente as potencialidades e o número de possibilidades, em que o nosso destino depende cada vez mais de nós próprios, em que a História é cada vez mais voluntária, é uma sociedade em que a opção se substitui à selecção da natureza, é uma sociedade em que, mais do que nunca, é vital o problema do poder e do direito à decisão. O desenvolvimento
do conhecimento científico exige a transformação das estruturas sociais e políticas actuais que, no fundamental, foram idealizadas no século XVIII. E o investigador científico e até o teórico, o detentor de informação científica e o homem vulgar, já não podem dar-se ao luxo de não fazer política. E aquilo que se exige é, fundamentalmente, a evolução no sentido da tomada de decisão ao mais baixo nível possível, da sua descentralização, da redistribuição do poder. Até porque o poder começa
a ser demasiado pesado para que o deixemos concentrar-se nas mãos dos políticos, devemos, antes, aliviar a sua carga dividindo-a pelo maior número possível de pessoas conscientes.
Em última análise todos nós somos exploradores do trabalho dos outros, ou melhor, uns dos outros e cada vez mais à medida que o homem perde em polivalência. E, hoje, a luta pela libertação
da exploração do homem pelo homem a título individual ou pelo sistema não deve orientar-se no sentido meramente económico, no sentido da redistribuição da riqueza; mas no
sentido da redistribuição do poder. Uma sociedade mais livre e mais justa não é uma sociedade necessariamente igualitária em termos de redistribuição da riqueza, é uma sociedade em que,
para além da justiça económica, se pratique uma verdadeira redistribuição do poder. E é por este prisma que o socialismo se afirmou como um sistema social tão passadista como o capitalismo,
um sistema social que promete a libertação económica das populações em troca da sua alienação enquanto sujeitos de poder, em que se objectiva a rapina do poder por detrás das promessas de equidade em matéria de natureza económica.
A intelectualidade, para além de alguns sectores profissionais mais específicos que constituem a chamada “intelligentsia”, não é uma classe social, e as suas reivindicações tendem a reflectir
os interesses de toda a população. Até porque com o desenvolvimento científico-técnico a tradicional dualidade explorador/explorado tenderá, embora através de um processo tendencialmente infinito, a deslocar-se para a contradição entre o homem e o meio técnico. Ora, uma reivindicação justa para além dos subterfúgios ideológicos alienantes é a que exige a redistribuição do poder e do direito à decisão. É esta uma reivindicação que não tende a segregar injustiça em nome da justiça, como aconteceria se uma “vanguarda” se apropriasse do poder na base de promessas que não poderia cumprir sem se negar a si própria.
É porque um sistema social orgânico assenta na redistribuição do poder que ele, em rigor, não pode ser conduzido por vanguardas revolucionárias senão numa margem muito limitada, que ele somente pode ir-se estruturando paralelamente ao desenvolvimento da consciência dos próprios interessados
– a sociedade na sua globalidade. Talvez por isso o mais difícil para se construir uma sociedade livre seja o facto de ela se pressupor uma sociedade de homens livres. E nós sabemos quanto é difícil a um homem ser livre, e ainda mais ser livre no meio de escravos; e como a maioria dos homens são escravos e orgulhosos dessa condição de escravos.