CAPÍTULO IX
SÓ A LUZ DO ESPÍRITO DEVE GUIAR-NOS
Quantos homens e mulheres se sentem como reis e rainhas no exílio, despojados do seu trono! Eles
julgam-se detentores de uma dignidade que, em sua opinião, ninguém lhes reconhece, e sofrem com as condições que lhes são impostas: a sociedade não tem qualquer consideração por eles e até os faz sentir que não necessita deles. Mas o que é a sociedade? Um grande palco de teatro, onde se desenrolam todos os tipos de comédias. Então, por que razão essas comédias
deveriam fazê-los esquecer-se de que o essencial é o que eles são no interior de si mesmos e não o
espetáculo que representam nesse palco? Tudo o que têm a fazer é manter a fé na imensidão da sua alma, no poder e na luz do seu espírito. É-lhes assim tão necessária a consideração dos outros? E, mesmo que venham a receber essa consideração, eles não sabem como é mutável e inconstante a opinião pública? Vede o que se passa com as pessoas célebres. Num dado momento, o mundo inteiro tem os olhos fixos nelas, mas, um tempo depois, são esquecidas.
Num dado momento, põem-nas nos píncaros; um tempo depois, assassinam-nas. Por vezes, até ocorrem as duas situações ao mesmo tempo: enquanto uns as admiram e as glorificam, outros destroem-nas.
Então, em que estado ficarão elas, se não souberem agarrar-se a algo de sólido, de estável, existente em si mesmas, o seu espírito? Há uma pequena história interessante sobre o
grande tenor Caruso. Certo ano, depois de ter cantado os primeiros papéis em várias óperas no Metropolitan de Nova Iorque, ele foi aclamado em triunfo. Todos lhe diziam: «A sua voz reconhece-se por toda a parte, é única!» Caruso, apesar de, obviamente, ter ficado muito lisonjeado, quis testar isso. Então, num dia em que devia cantar no La Scala de Milão, fez um acordo com um tenor que representava um papel secundário, para o substituir. É claro que ninguém sabia disso, e eis o que aconteceu: o público, ignorando que era Caruso que aparecia em cena naquele momento, quase não reagiu. Depois, quando entrou para desempenhar o papel principal, antes mesmo de ele ter aberto a boca, ouviram-se estrondosos aplausos.
Evidentemente, isto fê-lo refletir. Muitas vezes, são apenas o nome e a reputação que fazem o público reagir… até ao dia em que este se entusiasma com outro qualquer!
O Criador fez de todos nós depositários de dons, de faculdades, de talentos, que devemos cultivar o
melhor possível. Vós direis que isso implica muito trabalho e muitos esforços que os outros talvez não reconheçam… Mas por que é que dais tanta importância ao facto de os vossos talentos serem reconhecidos?
Deus, que vos concedeu essas riquezas, vê o que construís com elas. Não é razoável fazerdes depender o vosso aperfeiçoamento da opinião dos outros: o que conta é a opinião d’Ele, o vosso Criador.
Para aqueles que ficam desolados por permanecerem na sombra, o sucesso e a notoriedade parecem situações vantajosas. Mas, se eles interrogarem os que possuem essas vantagens, estes falar-lhes-ão de todos os inconvenientes que elas lhes trazem… Por diferentes razões, é certo, quer se trate de sucessos, quer de insucessos, não é fácil encontrar a atitude interior adequada. Portanto, a única coisa a fazer é dar pouca importância a uns e a outros.
O essencial é aprendermos a servir-nos das nossas faculdades, para aprofundarmos em nós a ligação com o nosso Pai Celeste. Se os outros reconhecerem as nossas faculdades e beneficiarem com elas, tanto melhor, mas isso é outra questão e não deve preocupar-nos. Nós, o que temos a fazer, é desenvolver-nos em equilíbrio e harmonia, a fim de nos aproximarmos cada vez mais da imagem do Criador que trazemos impressa em nós, pois, na verdade, os dons intelectuais
ou artísticos que não servirem para encontrar esse cunho divino não tornam necessariamente felizes
os que os possuem.1
Há tantos homens de ciência, filósofos, escritores, poetas, artistas, que vivem atormentados! E, enquanto o público se alimenta das suas obras, eles próprios trocariam, de boa vontade, o seu imenso talento por alguns dias de paz interior. Vós perguntareis: «Mas qual a razão de tantas desordens e tragédias na vida de pessoas tão notáveis?» É porque elas se limitaram a
cultivar o dom que receberam do Céu, sem se preocuparem em fazer um trabalho profundo para melhorar a sua maneira de viver. Muitos até pensam que são as suas paixões, os seus tormentos, os seus desequilíbrios, que estão na base do seu talento e, de certa maneira, alimentam tudo isso.
É verdade que as realizações da arte e do pensamento, tal como as realizações espirituais, têm
origem, na maior parte das vezes, em situações dolorosas, em preocupações profundas que os seres excecionais conseguiram, de alguma forma, ultrapassar.
Mas, para as ultrapassar verdadeiramente, é necessário fazer um trabalho interior; e, se esse trabalho não existir ou for insuficiente, é o desequilíbrio que acaba por arrastar os seres, com as angústias e os sofrimentos que os acompanham. Para os suportar, alguns viciam-se no álcool, nas drogas, na devassidão,
etc. Como eles têm realmente dons, isso não os impede de criar, de vez em quando, algumas obras
de arte. Mas são os outros que se aproveitam dessas obras de arte, não eles. Eles sofrem, e continuarão a sofrer, até imporem a si próprios uma disciplina que domine as forças obscuras que estão a destruí-los.
Mas este é um assunto sobre o qual a maioria das pessoas não reflete. Basta que alguns livros ou
algumas obras de arte lhes interessem, as inspirem; o que aconteceu ao seu autor não as toca minimamente. Que muitos deles tenham acabado de modo trágico, tenham enlouquecido, ou se tenham suicidado, isso parece-lhes quase natural e até mergulham avidamente na biografia de todos esses seres fora do comum, para se deliciarem com os mínimos detalhes.
Existe, neste fascínio do público, uma grande crueldade, mas, evidentemente, a maior parte das pessoas não tem consciência disso.
E, sobretudo, o que não se diz é que os seres que não alimentam os seus dons, as suas faculdades, através de uma disciplina interior, perdê-los-ão, mais cedo ou mais tarde, nesta existência ou na próxima. Uma vez que, pelos seus desregramentos, delapidaram todo o seu capital, regressarão à terra como seres muito insignificantes. Não podemos, por muito tempo, separar a vida artística ou intelectual da vida moral.2
Tem-se visto artistas admiráveis viverem no deboche e nas perversões e, à sua volta, muitos perguntavam- se como é que eles podiam exprimir assim o Céu, já que viviam no Inferno. Eles também não sabiam explicar. Ignoravam que os espíritos luminosos do mundo invisível vinham manifestar-se neles, na esperança de os salvarem. Sim, esse talento misterioso que se revela em alguns seres é uma espécie de ponte que as entidades espirituais estabelecem entre o Céu e eles. Eles escrevem, pintam, compõem, cantam e representam através desses seres que os habitam, que
fazem sacrifícios imensos para os tirarem do Inferno. e eles se obstinarem na via da destruição, tais entidades acabarão, um dia, por abandoná-los: fazem-no com tristeza, mas são obrigadas a isso. E, mesmo que tenham sido considerados génios, esses poetas, esses pintores, esses músicos, esses pensadores, acabam por ficar pobres e nus, privados dos seus talentos.
Se tendes mesmo necessidade de ser reconhecidos e apreciados, escolhei bem aqueles por quem
desejais ser estimados. O que ganha o mel em ser apreciado pelas vespas, o cordeiro pelo lobo ou o
rico pelos ladrões?… Vós direis que sabeis isso. De certeza? Estais certos de que, para atrair a aprovação ou os aplausos dos outros, nunca fareis nada contra a justiça, a sabedoria, a bondade, a generosidade, a beleza?
Quando vos associais a críticas e a zombarias, o que é que fazeis? No fundo de vós mesmos, sabeis
bem que essas críticas e essas zombarias são, muitas vezes, exageradas, mas, para agradar aos outros, ou para passar por alguém espirituoso, acrescentais a vossa pitada de sal. E, no domínio artístico, e até no político, quantos não há que se comprometem para terem sucesso! Eles não procuram ser apreciados pelos sábios, não têm interesse nisso, pois estes são tão pouco numerosos! Aí eles teriam um público bastante reduzido ou muito poucos votos nas eleições.
Têm vindo à nossa Fraternidade artistas, homens e mulheres, que me apresentaram as suas obras.
Alguns deles faziam pintura abstrata, outros, música concreta, etc. E quando, espantado, eu lhes perguntei se aquela associação de traços e manchas, ou aquelas sucessões de sons dissonantes, representava verdadeiramente algo para eles, responderam-me que as conceções tradicionais da arte agora estavam ultrapassadas e que, para atrair a atenção dos apreciadores, era preciso seguir por novas vias. Pois bem, mas onde é que levam essas correntes?…
Um artista de music-hall até me explicou que, cansado de fazer rir as pessoas com anedotas triviais,
escreveu uma peça de teatro de inspiração mística.
Mas essa peça tinha sido um fracasso: o público não compreendera nada das suas intenções e, portanto, ele fora obrigado a retomar os espectáculos que fazia anteriormente. Claro que é difícil atrair o público com assuntos místicos, e ainda é mais difícil se não se trabalhou durante muito tempo para aprofundar esses assuntos, a fim de se conseguir exprimir o que tocará
os seres no mais fundo de si mesmos. Como pode acreditar-se que, de um dia para o outro, é possível passar do cómico grosseiro para a espiritualidade?3
Nada é mais precioso do que ter uma qualidade, um dom, uma faculdade capaz de despertar o lado
divino dos seres. Mas é preciso estar consciente disso e decidir consagrar um tal dom a essa tarefa. Será que há muitas mulheres que, conscientes da sua beleza, se questionaram sobre os efeitos que essa beleza provoca nos outros?… Quer se trate da beleza, das faculdades artísticas ou das faculdades intelectuais, esforçai-vos por só as usar para despertar a centelha, a flor sagrada que está adormecida em todos os seres. Dessa forma, será a alegria do Céu que atraireis para vós.
Nós não viemos à terra para ser aplaudidos a qualquer preço! O que quer que façamos, devemos deixar-nos guiar pela luz do espírito, a fim de obtermos a aprovação divina. Se os humanos também nos apreciarem, muito bem, mas a sua opinião nunca deverá condicionar-nos. Ficai a saber, em todo o caso, que há sempre alguém que vos compreende e que vos aprecia: Aquele que vos criou; Ele sabe muito bem aquilo que valeis. Ele sabe que introduziu em vós uma centelha de vida imortal – o vosso espírito –, e isso deve bastar-vos.
E mesmo que tenhais poucos meios materiais, se não houver grande espaço para vós na sociedade, se não encontrardes condições para agir e para vos impordes pelas vossas capacidades, isso não é razão para vos sentirdes inferiores, rejeitados ou inúteis. Na realidade, podeis ter um valor extraordinário, único, participando no trabalho para a vinda do Reino de Deus e da sua Justiça à terra.4 Quando introduzirdes em cada pensamento, em cada sentimento, em cada ato, a ideia do Reino de Deus, sentireis desenvolver-se em vós algo que vos atribui um lugar que nada nem ninguém poderá tirar-vos.
E, entretanto, muitos daqueles que estiveram na ribalta eclipsam-se e desaparecem. Privados das
atividades que tinham atraído sobre eles os olhares dos outros, mergulham na inação. E que sofrimento o seu, ao observarem que aquilo em cuja construção aplicaram, durante anos, todas as suas energias, é frequentemente destruído, de um dia para o outro, pelos seus sucessores! Ao passo que aquele que trabalha na sombra para o Reino de Deus sente crescer em si algo
que nenhuma consideração, nenhuma glória humana, pode eclipsar nem sequer igualar.
A pior das situações na vida é sentir que não se serve para nada. Então, com o pretexto de que não
se tem as capacidades para se impor na sociedade de qualquer forma que seja, muitas pessoas arrastam-se para a direita e para a esquerda; elas bocejam, aborrecem-se e coçam-se, mesmo onde não têm comichão!…
Ao ponto de alguns, incapazes de descobrir onde empregar utilmente as suas energias, acabam
por cometer crimes. Não é que a sua natureza seja particularmente má, mas eles sentem-se ignorados, desprezados, e não vislumbram outra atitude senão ser violentos, delinquentes. Então, Ser sensível ao olhar, à opinião dos outros, não é repreensível em si mesmo. Só que a estima que
tendes por vós próprios, o sentido do vosso próprio valor, nunca deverá depender desse olhar, dessa opinião, mas sim da consciência do trabalho que sois capazes de empreender no segredo do vosso coração, deixando-vos guiar pela luz do espírito. A sociedade faz-vos sentir que não vos reconhece, que não tem necessidade de vós? Que isso não vos desgoste: encontrareis sempre um meio, um lugar para trabalhar para a vinda do Reino de Deus e da sua Justiça.
E, graças a essa consciência de fazer qualquer coisa de útil, tudo o que é bom e belo em vós vai despertar, alimentar-se, crescer, e ficareis mesmo espantados, ao experimentar tantas sensações novas: a paz, a dilatação, a liberdade, a verdadeira alegria.
Vós quereis que um rei vos escolha para seu ministro? Por que não? Mas isso depende de todo o
tipo de circunstâncias exteriores a vós; portanto, se alimentardes obstinadamente essa ambição, correis o risco de vos esgotardes, sem qualquer resultado. Ao passo que entregardes-vos ao serviço do Rei dos céus é algo que só depende de vós, e aí podeis ter aspirações muito altas.
Na vida interior, na vida espiritual, há que desejar ter um lugar junto do Rei; mas, nos assuntos terrestres, é preferível não aspirar a uma posição assim tão elevada. Se tiverem realmente necessidade de vós, acabarão por descobrir-vos; mas nada garante que sereis muito felizes, quando estiverdes sobrecarregados com responsabilidades e preocupações. Os Iniciados nunca procuraram postos elevados, mas, interiormente, as suas aspirações são tão elevadas que vós nem sequer podeis aperceber-vos delas. Tal como eles, pedi muito interiormente e aceitai um lugar modesto na sociedade, se o destino não vos apresentar um mais glorioso. Há sempre bastantes
candidatos para os lugares de generais, de ministros, de presidentes, de diretores…
Evitai lançar-vos em lutas desgastantes. Escolhei ir para onde tereis mais espaço ou, porventura, estareis sós; aí ninguém procurará impedir-vos de crescer.
Se vos colocardes junto de uma grande árvore em pleno crescimento, ela protestará e reclamará aos
gritos o seu espaço vital. Também não vos aventureis no território de uma fera. Sede antes como uma ave.
Que hipóteses de sucesso teria uma ave, com o seu corpo tão pequenino, fraco e ligeiro, e o seu biquinho, se quisesse disputar o lugar com uma fera? Mas ela também tem asas e voa livremente, no céu. A ave não tem a ambição de se impor à fera. Ela agradece em cada dia ao Criador que lhe deu o canto e a liberdade de movimento.
Os verdadeiros filhos e filhas de Deus são como as aves. Eles não querem abrir caminho através da
selva; guiados pela luz do espírito, procuram voar sempre mais alto, para daí trazerem a paz, a luz e a alegria, que partilharão com todos os seus irmãos e irmãs.5
Notas
1. Cf. «Vous êtes des dieux», Parte III: «Et Dieu créa l’homme à
son image».
2. Cf. Et il me montra un fleuve d’eau de la vie», Parte VII, cap. 1:
«Le talent ne suffit pas».
3. Cf. Criação artística e criação espiritual, Col. Izvor n.º 223,
cap. II: «As fontes divinas da inspiração».
4. Cf. Le Verseau et l’avènement de l’Âge d’Or, OEuvres complètes,
t. 26, cap. V: «Le Royaume de Dieu et sa Justice».
5. Cf. O que é um filho de Deus?, Col. Izvor n.º 240, cap. XIII:
«Um filho de Deus é irmão de todos os homens».