INTRODUÇÃO
A tradução que aqui apresentamos da principal obra em prosa
de Djalâl-ud-Dîn-Rûmî, fundador da Ordem dos Derviches rodopiantes, é a primeira a surgir em francês. Existem diversos manuscritos desta obra. O mais antigo encontra-se em Istambul; contém 216 folhas, ou seja, 410 páginas. Fîhi-ma-fîhi termina na p. 193; o Kitâb al-Ma’arif do filho de Djalâl-ud-Dîn-Rûmi, Sultão Walad, vem no seu seguimento. O colofão (N. T.: inscrição no fim de manuscritos ou de livros impressos, com o local, impressor e data) tem a data de 1316. Foi escrito quarenta anos após a morte do Mestre e parece ter sido copiado de um manuscrito redigido por um escriba presente nas sessões em que eram anotadas as conversas.
É o manuscrito asl, ou seja, o manuscrito de origem.
O segundo manuscrito encontra-se igualmente na Biblioteca
Fatîh, em Istambul. Contém 170 páginas, e está datado de
4 de Ramadão (Ramadhan) de 751 (1350), ou seja, setenta e
nove anos após a morte da Djalâl-ud-Dîn. Alguns ghazals e quadras do Mestre são acrescentados no seguimento desta cópia, da qual não fazem parte os Ma’ârif. Tem o título, não de Fîhima-fîhi, mas o de Asrâr-ul-Djalâlîya, «Os segredos de Djalâlud-Dîn». Este manuscrito é igualmente muito importante por ter sido certamente copiado de um manuscrito feito em casa do Mestre de Konia. Trata-se do manuscrito Ha.8 JALÂL RÛMÎ
Um terceiro manuscrito, que não parece tão autêntico como
os outros dois, da biblioteca Sulemaya de Istambul, sem data, é
do final do século VIII da Hégira (final do século XIV).
O quarto manuscrito, escrito em meados do século XV, sem
os Ma’ârif, encontra-se na Biblioteca Nacional de Teerão.
O quinto manuscrito, escrito em 888 da Hégira, pertence ao
professor Forûzânfar, a quem se deve a edição de Fîhi-ma-fîhi
em Teerão, em 1952. Uma edição, com bastantes erros, apareceu nas Índias em 1928.
Sobre a capa do primeiro dos manuscritos que mencionámos,
aparece o título de Kitâb Fîhi-ma-fîhi (O livro de Fîhi-ma-
-fîhi). A palavra «Kitâb» caiu em desuso e restou apenas Fîhi-
-ma-fîhi. Este título não foi, com toda a certeza, dado a esta
obra no tempo do Mestre, pois o segundo manuscrito chama-se
Asrar-ul-Djalâlîya. Mas foi sob o título de Fîhi-ma-fîhi que passou
à posteridade. Estas três palavras foram retiradas de uma quadra de Ibnul-’Arabî, o grande poeta místico que morreu em Damasco em 1240, e que Djalâl-ud-Dîn reencontrou, sem dúvida, nesta cidade.
Este poema encontra-se nos Futûhât-al-Makkîya (ed. Bulak,
2º livro, p. 777): diz-se que aquele que compreende este significado possui a jóia da vida».
Como traduzi-lo? Literalmente, Fîhi-ma-fîhi quer dizer: «Ali
dentro está o que lá está» ou «Isso contém em si o que contém
em si», «Contém o que contém», ou ainda «Tudo está ali».1 Podemos interrogar-nos sobre o sentido que convém dar a esta
expressão. Sem dúvida, o que parece aproximar-se mais do pensamento de Djalâl-ud-Dîn Rûmi é tratar-se de um ensinamento
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1 É assim que o traduz o Prof. H. Z. Ulken, em O Pensamento do Islão, Istambul, 1953,
p. 308.
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espiritual à altura daquele que o recebe: este último encontra
aí apenas o que é capaz de aí descobrir. Sublinhámos algures
a necessidade de tal receptividade do discípulo a respeito dos
conselhos do seu mestre.2 «As palavras», está dito em Fîhi-ma-
-fîhi, «podem apenas despertar um eco em vós. Elas são apenas
«a sombra da realidade… um pretexto».3 Elas adaptam-se à capacidade do ouvinte:4 «Nós esperamos», acrescenta, «que escutem estes ensinamentos com o vosso ouvido interior».5
Por outro lado – e isto não contradiz em nada o que acabamos
de indicar – este título poderia dar a entender que neste
ensinamento está oculto um segredo: não basta limitar-se
à aparência, mas é preciso procurar o aspecto mais interior.
No capítulo 26, após haver exposto algumas parábolas, Djalâl-
-ud-Dîn Rûmi declara: «Guardai-vos de dizer que haveis compreendido!…
A compreensão é não compreender… Esta compreensão
é para ti um entrave. É preciso escapar (lhe)…».6
Para chegar ao sentido profundo – ma’nî – dissimulado «sob
a bruma das palavras», a única disponibilidade, ou possibilidade
de acolhimento, não basta: impõe-se um esforço, um
passo, primeiro passo que já faz daquele que interroga – ou
se interroga – um peregrino,7 sâlik, da Via. «Como poderá
alguém chegar à pérola olhando simplesmente o mar? É necessário um mergulhador para encontrar a pérola».8
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2 Eva de Vitray-Meyerovitch: Mystique et Poésie en Islam, Djalâl-ud-Dîn Rûmi, Paris,
Desclée de Brouwe, 1968, reed. 1972, p. 56, 75 sq.
3 Fîhi-ma-fîhi, trad. francesa (Le Livre du Dedans), p. 31 e 86.
4 Ibid., p. 152
5 Ibid., p. 88
6 Ibid., p. 151
7 Mathnawî, VI, 84 seg.
8 Mathnawî, VI, 84 seg.
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A utilidade da palavra será: «ela incita-te na procura; não que
a coisa procurada seja obtida pela palavra, pois se assim fosse
não terias necessidade de te esforçar tanto… A palavra é como
uma coisa que vês agitar-se de longe: corres atrás dela para a
ver, mas não é por causa do seu movimento que a vês. A palavra
do homem, sob o seu aspecto oculto, é parecida com isto: ela
incita-te a procurar o seu significado, embora na realidade não
o vejas».9
A maior parte das almas está adormecida: o papel do mestre
consistirá essencialmente num aviso.10 Toda a obra de Djalâl-uddîn-Rûmi se inclinará para esta finalidade: «Eu», diz ele, «estudei as ciências e esforcei-me para que os sábios e os buscadores e as pessoas inteligentes e aqueles que pensam profundamente venham e eu lhes exponha coisas preciosas, estranhas e subtis.
Deus, o Altíssimo, assim o quis».11 O grande poeta místico que é
o fundador da Tarîqa mawlawîya nunca se permitiu praticar a
arte apenas pela arte:12 quis ser, acima de tudo, mestre espiritual,
e é sob este aspecto que o vemos aparecer em Fîhi-ma-fîhi.13
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9 Fîhi-ma-fîhi, trad. Fr., p. 246.
10 Cf. Aflâkî, Manâqib-ul-’Arifîn, trad. C. Huart. T. I, p. 258: «se nos deixássemos
adormecer, de que serviria isso a todos estes infortunados adormecidos? Tomei-os
todos a meu cargo, para os encomendar a Deus e fazê-los chegar à perfeição, livrálos
da sucessão de castigos e fazê-los atingir os degraus ascendentes do Paraíso, se
for do agrado do Deus único».
11 Fîhi-ma-fîhi, trad. fr., p. 107.
12 Ibid.
13 O Professor R. A. Nicholson, num artigo do J.R.A.S. (Cent. Sup., 1924, p. 1 – 8)
designa esta obra como «Table talks» de Rûmi, em alusão aos «Propos de Table» de
Luthero. O Prof. Arberry, na tradução inglesa citada (Introd. p. 16), assinala que
alguns comentadores, que indica mas não nomeia, consideram que Fîhi-ma-fîhi
significaria «pode-se encontrar neste livro o que está contido naquele livro», a saber o
Mathnawî outra obra de Rûmi de que falaremos mais adiante. Se é exacto existirem
sinais que nos remetem de uma obra para a outra e que é indispensável confrontar,
isto não é suficiente, segundo nós, para justificar a escolha do título desta recolha.
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Djalâl-ud-Dîn Rûmi nasceu em Balkh, no Khorassan, a 16
de Rabî’I 604 (30 de Setembro 120714). O seu pai, Bahâ ud-
-Dîn Walad, tornou-se célebre como teólogo e pregador.
Denominaram-no «Sultân ul-’ulamâ», sultão dos sábios. Era
um mestre sufi com vasta audiência, e exerceu sobre Djalâl-
-ud-Dîn – ao qual reconheceu a precoce santidade e a quem,
por esta razão, chamava «Mawlânâ», nosso mestre –, uma profunda influência. A família teve que fugir por causa da invasão
mongol e acabou, depois de múltiplas peripécias, por se
instalar na Anatolia, em Konya. Alâ’ud-Dîn Kayqobâd, soberano
seljúcida, amigo das ciências e das artes, convidou aí Bahâ’ud-
-Dîn Walad, que assumiu a direcção de uma escola (madrassa)
onde ministrou ensinamentos até à data da sua morte, sobrevinda em 628 Hég. Djalâl-ud-Dîn torna-se então discípulo de um antigo aluno de seu pai, Burhân-ud-Dîn Muhaqqiq Tirmidhî15 e, sob os conselhos deste deslocou-se a Alepo, onde estudou na escola de Halâwiya, que contava com eminentes sábios hanáfitas.
Em Damasco, conheceu Muhyî-ud-Dîn Ibn-ul-’Arabî, depois
regressou a Konya onde sucedeu a seu pai como professor de
Fiqh e de Shari’a. Em 1244, a existência do jovem teólogo foi
irremediavelmente transformada pelo encontro com Shams de
Tabrîz. Foi esse o acontecimento capital da sua vida, de que
ele próprio dizia: «Consiste nestas três palavras: estava cru, fui
cozido, estou queimado.» Sultân-Walad, seu filho primogénito,
seu confidente e seu sucessor, escreve a propósito: «Deus consentiu
que Shams se manifestasse particularmente a ele, e que
isto fosse para ele apenas… Ninguém teria sido digno de uma
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14 Esta data foi discutida, mas parece a mais segura.
15 Trata-se dele, particularmente nos cap. 4, 26, 56, de Fîhi-ma-fîhi.
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tal visão. Após tão longa espera, Mawlânâ viu a face de Shams;
os segredos tornaram-se para ele manifestos como o dia. Ele viu aquele que não se pode ver, escutou o que alguém jamais escutará de alguém… Enamorou-se dele e foi aniquilado».16
Durante três anos, Djalâl-ud-Dîn foi o discípulo apaixonado
de Shams. Depois este desapareceu misteriosamente, sem dúvida assassinado pelos discípulos, ciumentos do ascendente que aquele exercia sobre o seu mestre.17 Djalâl-ud-Dîn ficou durante muito tempo inconsolável e dedicou à memória do amigo desaparecido um Dîwân de uma beleza lírica sem igual.18 Depois instituiu o Samâ’, oratório espiritual que acompanha a célebre dança rodopiante característica da sua confraria. Este «concerto», verdadeiro ofício litúrgico, comporta todo um simbolismo que estudámos noutro lugar em pormenor.19 Baseando-se na «correspondência» do microcosmo e do macrocosmo representa, por um lado, a roda celeste dos planetas em volta do sol e, por outro, a busca do Eu supremo pelas almas exiladas. O canto da flauta, o ney, que preludia as sessões de Samâ’, exprime a nostalgia deste
exílio do ser longe da pátria espiritual que é a sua origem e o
seu Fim.20
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16 Walad-Nâma, texto persa, ed. de Djalâl Homaî, Teerão, 1355 Hég., p. 42. – Estamos
a preparar actualmente uma tradução francesa desta obra essencial para o
conhecimento da vida e da obra de Rûmi.
17 O hagiógrafo dos Derviches rodopiantes, Aflâkî, conta nas suas Manâqib-ul-’Arifîn,
t. I, p. 69 da trad. francesa citada, que Shams tinha suplicado a Deus que lhe desse a
conhecer um dos seus santos e ofereceu-lhe, em troca, o sacrifício da sua vida. Rûmi
faz alusão a isso no cap. 6 de Fîhi-ma-fîhi.
18 Trad. francesa por E. de Vitray-Meyerovitch com a colaboração de M. Mokri,
Klincsieck editor, 1973.
19 Mystique et Poésie en Islam, Desclée de Brouwer editor, reedição 1972.
20 Mathnawî Im i seg. Uma tradução francesa do Mathnawî por E. de Vitray Meyerovitch
deve aparecer nas Editions Sindbad.
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Depois da morte de Shams, Rûmi escolheu sucessivamente,
para confidente e para director espiritual dos seus discípulos,
Salâh-ud-Dîn Farîdûn, depois Husâm-ud-Dîn Tchelebi.
É instado por este último que compõe o seu célebre Mathnawî,
poema de 25.000 versos aproximadamente, dividido em seis
livros que, desde há séculos, é lido e objecto de meditação em
todo o mundo islâmico.
Já indicámos a frequência das semelhanças entre Fîhi-ma-
-fîhi e o Mathnawî. Não só os mesmos versículos corânicos, os
mesmos hadîth’s e os mesmos versos estão citados nas duas
obras, mas também as mesmas estórias e os mesmos temas: o
fluxo do pensamento, não é ele idêntico? Notemos, de passagem, a narração da conversão de Abbâs, tio do Profeta (cap. I de Fîhi-ma-fîhi, livro III do Mathnawî, 4473 seg.), a comparação do homem com o astrolábio de Deus (cap. II, Mathnawî VI, 3140 seg.), a história de Laylâ e Majnûn (cap. IV, VII, XVI, Mathnawî IV, 1533 seg., V, 3286 seg.), a lenda segundo a qual ‘Omar teria bebido sem qualquer consequência um copo cheio de veneno (cap. XXVI, Mathnawî V, 4238 seg.), a coluna que gemia (cap. XXXIV, Mathnawî I, 2113), a estória do rei que lia uma carta sem lhe responder (cap. XL, Mathnawî III, 1490 seg.), a do homem que roubava frutos num pomar (cap. XL, Mathnawî V, 3077 seg.), a história de José a quem oferecem um espelho (cap. L, Mathnawî I, 3158 seg.), etc.
A obra lírica do mestre de Konya, além do Dîwân-e-Shams-
-de-Tabrîz, comporta quadras, Rubâ’îyât. Quanto às suas obras
em prosa, à parte uma interessante recolha de cartas dirigidas às principais personalidades da época (Maktûbât) e alguns opúsculos dos quais um, Madjâlis sab’a, é parecido, pelo seu estilo, com Fîhi-ma-fîhi, este último é incontestavelmente a principal.
Foi editado pelo Professor Badî’uz-Zamân Forûzânfar, em Teerão, em 1952. Uma nova edição, posterior a esta, publicada (sem data) por Dâr-al-Tashîh v’at-Tardjamah, igualmente em Teerão, reproduz uma edição litografada anterior (Teerão, 1333, 330 p.).
A primeira parte desta edição contém 272 páginas (das quais 18
de introdução). Apresenta, com a supracitada edição de Forûzânfar,um número bastante grande de variantes. Escolhemos de entre elas, na nossa tradução, o que nos pareceu a melhor leitura, indicando as variantes em fim de página. O texto desta edição, sendo por vezes mais explícito, permite-nos acrescentar à tradução efectuada sobre a edição de Farûzânfar algumas passagens,21 e por vezes até uma página inteira.22
A segunda parte desta edição compreende 123 páginas. Reconhecendo, no entanto que a redacção é da mão de Sultân-Walad, os autores desta edição consideram que se trata de um seguimento de Fîhi-ma-fîhi, que publicam portanto como segunda parte desta mesma obra. Ora, segundo o Professor H. Ritter,23 esta pretensa segunda parte é na realidade o Kitâb al-Ma’ârif de Sultân-Walad, que cita mais de vinte manuscritos, encontrados na biblioteca da Turquia. Uma observação do próprio Sultân-Walad confirma que convém ver aí uma obra separada, visto declarar, propósito da história de Moisés e de Khezr (de que fala longamente no Walad – Nâna) que foi tratada “no início deste livro” (P. 195 da nossa tradução).
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21 Os números entre parêntesis remetem para as notas (capítulo especial). Os asteriscos
remetem para as variantes. As passagens entre aspas não existem na nova edição.
22 Por exemplo, a página 289.
23 H. Ritter, Philologika XI, «Mawlânâ Galâladdîn Rûmi und sein kreis», in Der Islam,
1942, p. 221 seg.
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Se é evidente que os Ma’ârif foram redigidos por Sultân-
-Walad, é muito provável que os discursos de Djalâl-ud-Dîn
Rûmi, reunidos sob o título Fîhi-ma-fîhi, tivessem sido recolhidos
e anotados pelo seu filho, quer imediatamente, quer pouco tempo após terem sido proferidos. Os Ma’ârif dão a impressão de terem sido escritos mais tarde por Sultân-Walad,
de constituírem no mais alto grau um trabalho de clarificação:
o conjunto é menos espontâneo, mais elaborado, parece reflectir o cuidado de apresentar as coisas de modo menos denso, mais explícito. A forma é menos diversificada; poucos interlocutores intervêm, praticamente não existem questões nem discussões. Cada capítulo aparece como um todo, mais coerente, um pouco semelhante a um sermão. Se Sultân-Walad repensou os ensinamentos de seu pai e se debruçou mais sobre o que considerava especialmente importante, não podemos
confirmar. Mas, não restam dúvidas de que se trata, aqui
e ali, de um mesmo ensinamento, vindo de um mesmo mestre
espiritual. Sultân-Walad indica, desde o início: «O meu pai dizia…» e, no capítulo 14: «Como Mawlânâ (que a minha alma lhe seja sacrificada!) disse…» Existe uma profunda unidade entre os dois textos, que se completam, cuja inspiração doutrinal é idêntica, onde se encontram por vezes os mesmos temas ou
estórias, por vezes as mesmas citações, e cuja redacção não
revela diferença de estilo. Em última análise, o verdadeiro «autor
» é sempre Rûmi: é o seu pensamento que se exprime, é um «escriba» único que o anota. A nossa tradução francesa de
Fîhi-ma-fîhi estava terminada quando foi publicada a tradução
inglesa dos «Discourses of Rûmi» do professor Arberry; mas a
preparação da nossa tese principal sobre os «Temas místicos
na obra de Djalâl-ud-Dîn Rûmi» obrigou-nos a adiar a data de
publicação.24 Fîhi-ma-fîhi constitui uma recolha de conversas de Mawlânâ com os seus discípulos, assim como com diferentes personagens, por vezes nomeadas. O seu interlocutor é frequentemente Mu’în-ud-dîn Pervâna, poderoso ministro de Rukn-ud-Dîn, a quem Rûmi, que Pervâna protegia, escreveu numerosas cartas.
Estas conversas apresentam-se geralmente sob a forma de
questões colocadas, às quais o mestre responde directamente;
depois passa a temas diversos, segundo a inspiração do momento ou a ocasião fornecida pelas circunstâncias. Por diversas vezes, assinala que, quando trata de um tema particular, é para comentar um versículo corânico ou um hadîth profético que lhe vieram ao espírito, ou então para discutir uma opinião enunciada.
Por vezes, todo o capítulo apresenta a forma de um ensaio reagrupando os pensamentos centrados num tema dado, a menos que se trate de uma verdadeira controvérsia entre dois ou vários personagens, em que o mestre é chamado a decidir.
O carácter desordenado é próprio de uma obra deste género.
Não vale a pena procurar uma verdadeira continuidade entre os
temas abordados, e muito menos uma construção doutrinal. No
entanto, é possível descortinar, sob a multiplicidade das alusões,
das estórias, das citações, das digressões, um fio condutor. Esta
unidade subjacente à multiplicidade parece-nos a característica
essencial das obras de Djalâl-ud-Dîn Rûmi, quer se trate da
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24 P. 195 da nossa tradução.
John Murray editor, Londres, 1961. Esta tradução é efectuada apenas sobre a edição
de 1952 devida a M. Forûzânfar.
Reeditada sob o título «Mystique et Poésie en Islam», nas edições Desclée de
Brouwer.
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abundância de temas que se sobrepõem e se recortam ao longo
da imensa teodiceia do Mathnawî, ou dos ghazals do Dîwân.
Estes obedecem à lei do género, os dísticos (beit) independentes
uns dos outros quanto ao sentido são unidos entre si, como as
pérolas de um colar, por uma certa coloração psíquica, uma certa
tonalidade espiritual, um mesmo hâl. Encontra-se aqui algo
análogo.
O estilo destas conversas é familiar e simples: é a língua falada,
na época, nos meios eruditos. Não se encontram traços deste estilo trabalhado e ornado de figuras de retórica que já caracteriza frequentemente as obras desta época e, cuja preciosidade foi crescendo. Esta clareza verbal não exclui algumas dificuldades de tradução, devidas nomeadamente à ignorância em que nos encontramos acerca dos acontecimentos a que se faz alusão. Por exemplo, o capítulo 34 (em árabe) é bastante obscuro e não se sabe se se trata de um sonho ou de uma visão simbólica.
Já sublinhámos a importância que Rûmi dava ao seu papel
de guia espiritual.25 É em Fîhi-ma-fîhi que se clarifica esta intenção didáctica. As pequenas histórias que abundam nesta obra têm frequentemente a frescura das trovas da Idade Média; mas ele próprio dizia: «Os meus gracejos não são gracejos, são um ensinamento, são destinados a dirigir o povo e a fazê-lo compreender o meu pensamento».26 Acrescentava: «Se os místicos se servem de comparações e de imagens, é para que o homem
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25 Ele costumava dizer acerca do Mathnawi: «Eu não compuz o Mathnawi para que se
ande com ele como um amuleto, ou para ser repetido, mas para que este livro seja
posto debaixo dos pés e se voe com ele. O Mathnawi é a escada de ascensão para
a verdade e não deves pôr esta escada à volta do teu pescoço e ires de aldeia em
aldeia, pois de tal modo nunca poderás tocar a abóbada celeste; se agires assim, não
terás sucesso na demanda do fim último do teu coração» (Cf. Mystique et Poésie en
Islam, p. 51).
26 Aflâki, op. cit. T. I, p. 293.
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amante, mas de espírito fraco possa colher a verdade».27 Ele desejavaefectivamente prender a atenção de ouvintes de níveis
diferentes. As fontes às quais se refere são em primeiro lugar
o Qor’ân e os hadîth [tradição profética]; cita frequentemente
o poeta Sanâ’î por quem nutria uma particular admiração e ao
qual consagrou magníficas odes do seu Dîwân,28 por vezes reproduz também alguns dos seus próprios versos.
Todo o ensinamento do mestre de Konya traz a marca da
maior tolerância:
«Se», escreve ele em Fîhi-ma-fîhi29 «os caminhos são diferentes,
o fim é único. Não sabes que diversos caminhos levam à
Ka’ba? Para alguns, o caminho da Ka’ba passa por Bizâncio, para outros pela Síria, e para outros pela Pérsia, e ainda para outros pela China… os caminhos diferem; o fim é único.»
Ele cita várias vezes, sempre em Fìhi-ma-fîhi, este verso de
Sanâ’î: «A impiedade e a fé correm as duas sobre o caminho de
Deus.» E encontra-se, nesta mesma obra, menção aos conflitos
que lhe atiçavam os Ulemás «grandes pensadores» que criticavam o Samâ’e o carácter democrático da tarîqa30 que ele havia fundado.
Esta revestiu-se de uma grande importância para todo o império
otomano e para o resto do mundo islâmico, tanto pelo número
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27 Mathnawi, VI, 117 sq.
28 Ghazals nºs 996 e 1007.
29 Trad. fr., p. 134-135.
30 Este termo, que significa «via, caminho», tem dois sentidos: um designa um método
de direcção espiritual, um itinerarium mentis ad Deum; o outro, um conjunto de
ritos preconizados por uma via religiosa comum; por fim, tornou-se sinónimo de
confraria (Cf. E.I., art. Tarîqa).
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dos seus seguidores como pela sua fama. Teve takya («mosteiros») mawlawîs, não apenas no Oriente, mas até na Europa central.
A ligação à tarîqa compreendia geralmente a residência – habitualmente temporária num destes takya. A tarîqa mawlamîya
fundada por Djalâl ud-Dîn Rûmi foi organizada na sua forma
definitiva pelo seu filho primogénito, Sultân-Walad. Do ponto
de vista ritual, ela distingue-se principalmente pela sua dança
giratória, o Samâ’. Os trajes dos derviches mawlaîs são muito
característicos e um simbolismo prende-se às diferentes partes
da sua indumentária: é assim que o gorro de feltro alto representa a pedra tumular, a veste branca a mortalha e o casaco preto que os envolve a tumba, de onde devem surgir para um novo nascimento. A música, a dança e a poesia da tarîqa exerceram uma grande influência no imenso império otomano para lá das suas fronteiras. Houve aqui, a partir do século XV, uma literatura mawlawi, bastante diferente da literatura clássica turca. Nos takya eram dados cursos de interpretação do Mathnawî, e as obras de Rûmi deram lugar a numerosos comentários, em árabe, em turco e em persa.31
Quando Djalâl-ud-Dîn Rûmi morreu, a 12 de Dezembro de
1273, todos os habitantes de Konya, sem distinção de crenças,
seguiram o seu funeral, que ‘Aflâkî descreve assim:
«O barulho dos timbaleiros, o som dos oboés e do clarim
anunciavam a «boa nova». Os muezzins com voz agradável chamavam à oração da Ressurreição; vinte turbas de excelentes cantores recitavam os cantos fúnebres que o nosso Mestre tinha, ele próprio, composto:
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31 Cf. Mystique et Poésie en Islam, p. 38 seg.
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O Rei do pensamento transparente dançando se foi embora
para outro país, o país da Luz.32
É impossível, repitamo-lo, resumir ou condensar o ensinamento
dispensado pelo mestre de Konya aquando das conversas
anotadas em Fîhi-ma-fîhi. Apenas se pode destacar um certo número de temas, que se encontra sob uma forma tanto didáctica como lírica, no Mathnawî e, de maneira mais alusiva e mais velada, no Dîwân. Assinalamos a passagem da comunicação sem palavras entre mestre e discípulo (ham-damî). (Cap. 2, 6, 7, 10, 11, 31), a natureza do homem, astrolábio de Deus (cap. 2, 12), semelhante a um vaso flutuando sobre o oceano do Ser (cap. 41), a um espelho para o outro (cap. 6, 43), a busca mística (cap.11, 31, 44, 51), o amor (cap. 10, 16, 20, 33, 36, 51, 56, 57, 60, 61, 62, 63), a oração (cap. 3, 8, 28), a natureza do conhecimento (cap. 11), o problema do mal (cap. 30, 47), o do sofrimento (cap. 5), a escala universal do Ser (cap. 5).
Embora seca e incompleta, pois deve limitar-se a assinalar
os assuntos mais frequentemente tratados, sem levar em conta
a multiplicidade dos temas considerados nem das digressões,
esta enumeração deixa, no entanto, entrever a riqueza dos temas abordados.
Djalâl-ud-Dîn Rûmi comprazia-se em recordar os versos de
Sanâ’î:
Há céus no reino da alma que governam os céus deste mundo.
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32 Op. cit., t. II, p. 97 – 100.
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Meditar sobre este dístico é ir, cremos, ao encontro da intuição
mestra de toda a obra de Rûmi: «O homem transpõe infinitamente o homem», ele é um microcosmo, um espelho do divino.
A dança ritual é o símbolo desta lei fundamental de analogia
que rege todas as coisas. É uma maiêutica que leva a uma tomada de consciência dessa lei e, o ensinamento do mestre, por seu lado, tem por objectivo fazer aceder o discípulo à sua plena estatura espiritual. Certamente, ser-lhe-á necessário, segundo o hadîth do Profeta evocado igualmente em Fîhi-ma-fîhi, «falar com as pessoas segundo o seu grau de inteligência»; mas «algumas palavras que transmitem uma lição são como uma lâmpada acesa que deu um beijo a uma outra que ainda estava apagada e, depois foi-se embora. Isso é suficiente, e o alvo foi atingido».
Eva de Vitray Meyerovitch