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QUE FUTURO HOJE? – Economia, Violência e Sagrado na Perspectiva de Jean-Pierre Dupuy

30.00

Informação adicional

Peso920 g
ISBN

978-989-8691-70-5

Ano

2018

Edição

1

Idioma

Formato

145 x 210

Encadernação

Cartonada

N. Pág.

720

Colecção

REF: 770 Categorias: , , ID do produto: 23526
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SINOPSE:

Parece-nos ponto assente que a origem ou génese da economia está no sagrado, no religioso.

Daí que a economia das sociedades tradicionais (e não só, como veremos) se encontre numa situação de total dependência e subordinação ao sagrado, às normas morais por ele prescritas e impostas.

Deste modo, a distribuição dos bens de subsistência ou da riqueza, obedecendo a preceitos rigorosos de solidariedade, assegura a sobrevivência de todos, não deixando nenhum membro da comunidade abandonado à sua sorte ou numa situação de exclusão social.

É com alguma propriedade que M. Sahlins, em Stone Age Economics, considera estas sociedades arcaicas como verdadeiras sociedades da abundância – não no sentido de que dispõem de coisas e recursos em abundância, mas no sentido de que o que existe tem de chegar para (a sobrevivência de) todos.

Início na pág. 243:

2.3. O SAGRADO E A SUA SUBSTITUIÇÃO PELA ECONOMIA

INTRODUÇÃO

Parece que vivemos num tempo em que tudo foi reduzido à condição de mercadoria; tudo se vende ou tudo se compra; isso apenas depende do preço. Até aquilo que, à primeira vista é inegociável, parece não escapar à lei da oferta e da procura e à tentação do preço (elevado). Há uma “invasão progressiva de todos os domínios da vida, privada e pública, social e política, pela lógica da economia e da mercadoria”1. Para se chegar a esta situação, foi preciso que o sagrado tivesse sido desacreditado. Ela seria impossível no tempo em que as normas morais e sociais, os preceitos e os valores se consideravam de origem transcendente, impostos pelos deuses, indiscutíveis, ditames absolutos intransponíveis. Algumas questões se colocam, então:
1.ª O que havia no sagrado que fez com que ele tivesse perdurado tanto tempo e ainda perdure hoje nalgumas culturas e civilizações? 2.ª O que se terá passado para que o sagrado fosse desacreditado? 3.ª Como se passou do sagrado à economia? 4.ª Como é que a economia substitui o sagrado? 5.ª Será a economia alguma vez capaz de substituir totalmente o sagrado em todas as suas dimensões ou, por outras palavras, poderá a economia preencher ou substituir a vocação metafísica do ser humano? E as motivações psico-afectivas e cognitivas ou sociais? E a necessidade do simbólico?
São estas as questões que procuraremos responder de seguida.

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1 SE, p. 9.

2.3.1. O SAGRADO E SEU ENFRAQUECIMENTO

O sagrado sofreu um processo de erosão até à sua derrocada. Hoje, a grande parte das sociedades humanas sabe que o que as mantém unidas, a razão do seu elo, não está jamais em algo transcendente, nos deuses do Olimpo, fora de si e do seu domínio; que os desenvolvimentos e acasos da vida social não se lhes deve, nem aos seus caprichos. As sociedades modernas e democráticas atribuem a razão da sua unidade à sua própria autonomia que está consubstanciada num lugar ou instância (o Estado e suas instituições) que sabem ser engendrada por si. À medida que se desenvolve a consciência de que o elo social é de origem humana, simultaneamente os sujeitos destroem as barreiras simbólicas que os separavam ou distinguiam pelo estatuto ou classe social. Perdeu-se o sentido da diferença o que espicaçou o desejo mimético, a rivalidade e a indiferenciação, por um lado, e as lutas pela igualdade, por outro. Todo este novo clima social, para não cair na violência generalizada e desagregadora da sociedade, teve que produzir maneiras de iludir o desejo mimético e a inveja produtores de instabilidade e violência. Uma das formas é a produção económica multiplicadora de bens através de uma revolução industrial ainda em marcha; a outra é economia de mercado que, reduzindo tudo, ou praticamente tudo, à condição de mercadoria, acelera as trocas comerciais tornando uma maior quantidade de bens acessíveis a um maior número de pessoas; outra é a organização política do Estado moderno consolidada e alicerçada em novas ideologias que consistem em ressacralizações secundárias de supostos fundamentos da unidade social, tais como a Natureza, a História, a Cultura, o Espírito do povo, o Mercado, etc.2 Deste modo, as sociedades modernas apresentam-se aos seus membros como algo de necessidade natural e/ou sagrada. Segundo Durkheim,
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2 “Chaque étape de la désacralisation, par sa violence même, a reproduit un nouveau sacré. Les démystifications successives du caractère prétendument universel ou transcendent de l’ordre régnant n’on su qu’installer de nouveau faux universels et de nouvelles fausses transcendances.” OD, pp. 163/4.

Esta aptidão da sociedade em se erigir em deus ou a criar deuses não foi em parte alguma mais visível senão durante os primeiros anos da Revolução [francesa]. Neste momento, com efeito, sob a influência do entusiasmo geral, coisas puramente laicas por natureza foram transformadas, pela opinião pública, em coisas sagradas. É a Pátria, a Liberdade, a Razão3.
Para percebermos melhor em que consistiu este processo, teremos que, em primeiro lugar, saber quais os alicerces em que se fundamentava o sagrado, saber o que lhe conferia estabilidade e credibilidade e o fazia manter-se como factor de união e coesão sociais.

2.3.2 A MÉCONNAISSANCE COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA AO SAGRADO E ÀS SOCIEDADES ARCAICAS

Segundo Girard, o que havia no sagrado que o sustentava como tal e como fundamento do elo social era a méconnaissance. “Os fiéis não sabem nem devem saber o papel desempenhado pela violência”4, ou seja, os sujeitos e agentes do processo do mecanismo vitimário não podiam ter consciência de que a sua união resultava primeiramente da unanimidade violenta contra uma vítima arbitrária e injustamente perseguida, do convencimento unânime e injusto de que ela era responsável por todos os males, e, em seguida, da atribuição a essa vítima da responsabilidade da calma, da paz, da coesão e união pacíficas da comunidade. Como diz Dupuy “trata-se de um processo que não pode funcionar senão na opacidade”5… Como já vimos, para que o rito e o sacrifício tivessem absoluta eficácia na contenção da violência dentro da comunidade, era indispensável a méconnaissance, ou seja, todos os sujeitos teriam que se convencer e convenciam-

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3 Émile Durkheim, op. cit., pp. 305/6.
4 Girard, VS, p. 17.
5 OD, p. 162.

se mesmo que a vítima sacrificial era demoníaca e má, causadora de todos os males e sofrimentos que afectavam a comunidade e, depois de sacrificada, sentiam-se aliviados e mais reconciliados do que nunca porque julgavam que se tinham desembaraçado da causa de todos os males e, por outro lado, esta calma e união vividas eram, para os perseguidores, a prova de que a vítima era realmente maléfica e também benéfica porque, graças a ela, estavam agora reunidos e em paz. (…)“Nos mitos somente esta mesma vítima traz a ordem, simboliza-a e encarna-a mesmo”6.
Outro aspecto da méconnaissance, que alimenta e mantém o sagrado, é a ilusão de que há uma distinção entre uma violência má e recíproca, que é a violência de todos contra todos, – que ameaça a coesão da comunidade e provoca grande sofrimento, ou melhor, é a violência do adversário entre duplos, é a violência do outro –, e uma violência “boa”, “purificadora”, “santa”, que é a violência exercida sobre a vítima expiatória e/ou sobre a vítima sacrificial. O sacrifício aparece como uma violência boa ou benéfica porque, sendo a violência um processo interminável, devido ao jogo de vinganças e represálias, só o sacrifício consegue, pela violência contra a vítima, contra um só, estancar a violência de “todos contra todos” e restaurar a paz.

Os homens não penetram no segredo desta dualidade. É-lhes necessário distinguir a boa violência da má; eles querem repetir continuadamente a primeira a fim de eliminar a segunda. O rito não é outra coisa7.

Esta crença na eficácia do sacrifício e a sua necessidade resultam, sobretudo, do medo da indiferenciação e do caos que a violência provoca na comunidade. As sociedades arcaicas, receando essa indiferenciação, voltam-se para o sacrifício como remédio catártico contra

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6 Girard, BE, p. 66.
7 “Les hommes ne pénètrent pas le secret de cette dualité. Il leur faut distinguer la bonne violence de la mauvaise ; ils veulent répéter sans cesse la première afin d’éliminer la seconde. Le rite n’est rien d’autre.” Girard, VS, p.61.

a indiferenciação cultural e contra a violência. Na verdade, o sacrifício restaura a diferenciação pelo reforçar das normas, dos interditos, pela reposição da diferença de estatutos e papéis sociais dentro da comunidade. Cada um aceita e sabe qual o seu lugar dentro da sociedade e, assim, melhor a sociedade se protege das rivalidades e invejas geradoras de conflitos e da confusão violenta. Assegurada a paz pelo sacrifício, a comunidade podia dedicar-se às actividades agrícolas que lhe asseguravam a sobrevivência, sabendo claramente cada um o lugar a ocupar, o seu estatuto e o seu papel e, em consequência, o seu direito na partilha dos bens: não há lugar para a inveja e/ou comparações, porque todos reconhecem e aceitam a diferença (cultural) estipulada pelos deuses. Será que a economia moderna, enquanto substituta do sagrado, também só funciona e se reproduz devido a uma certa méconnaissance? Discutiremos este assunto.

2.3.3. A DESTRUIÇÃO DA MÉCONNAISSANCE PELA REVELAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ

A erosão do sagrado começa pela destruição da méconnaissance, sem a qual as sociedades modernas não seriam possíveis. Segundo Girard, o primeiro e incompleto desvelar da méconnaissance é o do judaísmo. Surge aqui um espírito oposto a toda a tradição cultural e a toda a mentalidade da época. Um espírito novo que vai desmontando, pouco a pouco, a lógica da violência: quando “Caim se lançou sobre Abel e o matou, Jahweh disse a Caim: «Onde está teu irmão Abel? […] Que fizeste? Ouço o sangue do teu irmão, do solo, a clamar por mim!»”8 Repare-se que, como diz Girard, “o próprio Deus intervém e, em resposta à morte fundadora, enuncia a lei contra a morte”9 tomando a defesa da vítima.

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8 Génesis 4, 8-10.
9 Girard, CC, p.221.

Ora, isto representa uma verdadeira revolução em relação à mitologia anterior em que a vítima era sempre unanimemente considerada culpada. Há, portanto, “uma mudança de perspectiva que consiste em colocar-se do lado da vítima, em proclamar a sua inocência e, ao mesmo tempo, a culpabilidade dos seus assassinos”10. A vítima começa a ser apresentada como inocente: “Eles atacam a vida do justo, declaram culpado o sangue do inocente”11. Os redactores judeus da Bíblia invertem as relações entre a vítima e a comunidade perseguidora: “O justo que morre condena os ímpios que vivem”12. Girard vê aqui o começo do “estabelecimento de um sistema diferencial que desencoraja sempre a rivalidade mimética e o conflito generalizado”13. Veja-se, agora, a denúncia do sacrifício humano e a sua substituição pelo sacrifício animal na história de Abraão e Isaac:
O Anjo disse: «Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus» […] Abraão […] viu um cordeiro preso pelos chifres a um arbusto […] e o ofereceu em holocausto no lugar de seu filho14.
Dupuy assinala que este não sacrifício de Isaac (ou de Ismael para os muçulmanos) “representa na história das substituições sacrificiais um momento excepcional, a passagem do sacrifício humano ao sacrifício animal”15. José, depois de maltratado pelos seus irmãos (uma vítima inocente acusada sem razão mas que eles se recusam a matar16) e de vendido

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10 Cf. Ibidem, p.223.
11 Salmos 94, 21.
12 Sabedoria 4, 16.
13 Girard, CC, p.221.
14 Génesis 22, 12-13.
15 Cf. AOM, p. 62.
16 “Joseph est victime sacrificielle. Tout le mythe est marqué de substitutions. Le meurtre n’a pas lieu, mais a lieu l’expulsion. L’expulsion n’a pas vraiment lieu, la vente la remplace.” Michel Serres, Le parasite, op. cit., p. 278.

aos ismaelitas, que o levaram para o Egipto, logo que, em tempo de fome, os reconhece quando aqueles procuravam alimento no Egipto, não tem uma atitude de represália nem de vingança pelo mal que lhe fizeram; pelo contrário, mostra-se feliz e procura a reconciliação:
Eu sou José, vosso irmão que vendeste para o Egipto. Mas agora não vos entristeçais nem vos aflijais por me terdes vendido para cá, porque foi para preservar vossas vidas que Deus me enviou adiante de vós17.
José, mesmo como vítima inocente, não responde à violência com violência: estancou a lógica violenta, iniciou uma nova lógica. Note-se que ele possuía, enquanto prefeito do faraó, um poder excepcional de vingança, e abdicou dele, transformando-o em poder de dádiva e de reconciliação: atende amigavelmente o pedido de seus irmãos. José é apresentado, pelos redactores judeus, não como uma vítima sacralizada, com aspecto demoníaco ou sagrado, mas como uma figura humana e vítima inocente o que mostra que a Bíblia, ao fazer a reabilitação das vítimas, tem um efeito dessacralizante18. As cidades de refúgio, onde se protegiam os homicidas involuntários, são uma outra medida que visa o estancar da escalada violenta19. Certas medidas de protecção colocavam em evidência a moral social que obriga a solidariedade e, portanto, o combate à escassez. Visavam, por isso, a justiça e, consequentemente, a não-violência: “Não oprimirás um assalariado pobre […] Pagar-lhe-ás o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e disso depende a sua vida. Deste modo, ele não clamará a Jahweh contra ti, e em ti não haverá pecado”20.

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17 Génesis 45, 4-5.
18 Cf. Guy Lefort, in Girard, CC, p.229.
19 Cf. Deuteronómio 19, 4-6. 20 Ibidem 24, 14. Também nesta pequena passagem a violência é vista como exterior ao próprio homem. Virá de Jahweh. Mas repare-se que é a injustiça humana a sua causa. Ora, notamos que Girard parece não dar importância ao fenómeno da privação e da punição (frustração devido à falta dos meios es-

O respeito pelos direitos dos humildes e dos estrangeiros tem a mesma finalidade: “Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão, nem tomarás como penhor a roupa da viúva”21; “Escasso alimento é o sustento do pobre, quem dele o priva é um homem sanguinário. Mata o próximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o que priva do salário o diarista”22; “Filho, não recuses ao pobre o seu sustento, não desvies os teus olhos do miserável”23. Estas poderosas normas morais tinham como efeito impedir a «raridade» e, consequentemente, a violência. Quanto à nova imagem do Deus, os Salmos de David dão a imagem de Jahweh como Deus bom e glorioso: “Dai graças a Jahweh, porque é eterno o seu amor!”24. Num salmo de Salomão denunciam-se aqueles que “atacam a vida do justo” pois “declaram culpado o sangue do inocente”25. Está aqui bem expressada a defesa da vítima inocente e, ao mesmo tempo, a profecia e a denúncia da violência sobre a vítima expiatória por excelência, segundo Girard: Jesus. Prenuncia-se já, aqui, o Deus cristão que se identifica com as vítimas, com a vítima por excelência, porque a mais perfeita, a mais justa e a mais inocente – o Crucificado. E Girard conclui: “Nos Salmos penitenciais em particular, vemos a palavra a deslocar-se dos perseguidores para as vítimas, daqueles que fazem a história para aqueles que a suportam”26. Por seu lado, os deuses pagãos são coisa morta, produto da violência: “têm boca, mas não falam; têm olhos, mas não vêem; têm

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senciais à sobrevivência) como causa da violência, para além da má mimese, a não ser que ele situe estes fenómenos também nesse quadro, mas não no-lo esclarece.
21 Ibidem 24, 17.
22 Eclesiástico 34, 21-22. «Diarista», no original, é o mesmo que «homem que trabalha à jorna» ou «jornaleiro».
23 Eclesiástico 4, 1. 24 1 Crónicas 16,34. 25 Salmos 94, 21. 26 Girard, BE, p.156. Note-se que Jesus se inclui também na categoria das vítimas que “suportam a história”: Ele suporta a violência da crucificação.

ouvidos, mas não ouvem; […] têm mãos mas não tocam; têm pés mas não andam”27. Estes ídolos têm origem na morte:

Um pai, desconsolado por um luto prematuro, manda fazer uma imagem do seu filho tão cedo arrebatado, e honra agora como deus o que antes era um homem morto, e para seus súbditos institui mistérios e ritos28.

Apesar de, “em todo o Antigo Testamento”, se encontrar “um trabalho exegético que se efectua em sentido contrário ao do dinamismo mitológico habitual”29, a necessidade da separação das duas lógicas (a violenta e a não-violenta) não foi levada até às últimas consequências porque ainda se admite como legítima a represália sobre aquele que pratica o mal e que é nosso inimigo. Quer dizer, as duas lógicas, a da violência e a da não-violência ainda não foram claramente separadas. No Antigo Testamento, por diversas vezes, “é o próprio Deus que é apresentado como o principal autor da perseguição”30. Apesar disso, a inspiração bíblica e profética prepara a Revelação porque “em lugar de deslocar sempre sobre a vítima a responsabilidade do assassínio colectivo […] tende a situar a responsabilidade da violência sobre os verdadeiros responsáveis, sobre os membros da comunidade”31. A revelação definitiva do carácter injusto e cruel do sacrifício e dos deuses do sacrifício terá sido feita, segundo Girard, pelos Evangelhos, nomeadamente pela narração da paixão e morte de Jesus32.

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27 Salmos 115, 13-15.
28 Sabedoria 14, 15 Como se vê, Girard não foi o primeiro a defender a tese da morte fundadora porque ela já se encontra aqui, neste passo do Livro da Sabedoria.
29 Girard, CC, p. 235.
30 Ibidem, p.235
31 Ibidem, p.259.
32 “J’ai […] la conviction que le passage à la théorie du christianisme n’est pas fondé dans l’oeuvre de Girard. Toutefois, pour son auteur, c’est une déduction logique et je dirais même un préssuposé de tout ce qui précède puisque c’est

Aí, ao contrário dos mitos, a história é narrada não na perspectiva dos perseguidores e assassinos, mas na perspectiva da vítima. “Não há nada nos Evangelhos para sugerir que a morte do Cristo é um sacrifício”33. Os Evangelhos denunciam o sacrifício revelando a sua mentira, injustiça e violência. São, na perspectiva de Girard, o desmontar de todas as religiões fundadas na perseguição e expulsão de vítimas e bodes expiatórios. Os deuses, que reclamam o sangue das vítimas, são falsos deuses. Logo os interditos, normas, cultos, diferenças culturais atribuídas a esses deuses são também falsos, não têm razão de ser.
Consequentemente, esta quebra progressiva da méconnaissance, que era a garantia da estabilidade das sociedades arcaicas fundada sobre o sagrado, pois o conhecimento do funcionamento do mecanismo vitimário, impede o transfert colectivo e, em consequência, a sacralização da vítima, vai fazer aparecer o fenómeno da escassez já que os interditos perdem seu poder e eficácia. Os sacrifícios perdem a sua eficácia e utilidade.

Ora, se o cristianismo torna impossível, porque ineficaz, a resolução sacrificial da crise, se pelo mesmo golpe destrói a instituição do sacrifício […], é evidente que ele dá as condições de emergência da escassez, já que, paulatinamente, ele só pode provocar o seu enfraquecimento e depois o abandono dos interditos e obrigações tradicionais34.

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la révélation chrétienne qui rend cette connaissance possible.” Jean-Pierre Dupuy, «Entretien»… par Jean Guillaume et Julien Guitard sur René Girard, in http://www.polytechnique.fr/eleves/binets/article.php?id=68
33 Girard, CC, p. 266.
34 “Or, si le christianisme rend impossible, parce que inefficace, toute résolution sacrificielle de la crise, si du même coup il détruit l’institution du sacrifice […], il est évident qu’il donne les conditions d’émergence de la rareté, puisque, à la longue, il ne peut qu’entraîner l’affaiblissement puis l’abandon des interdits et des obligations traditionnels.” Cf. Paul Dumouchel, L’EC, p. 181. Estará aqui uma das chaves que explicará a fome em África dos nossos dias?

ÍNDICE

Agradecimentos
Siglas e abreviaturas

0. Introdução
1. O «Novo Paradigma» das Ciências Sociais e Humanas
1.1. A Lógica dos sistemas auto-organizacionais (dos seres vivos)
1.1.1. Cibernética versus auto-organização e autonomia
1.1.2. Da simplicidade à complexidade e autonomia
1.1.3. O paradoxo de Newcomb e a incorporação do tempo na nova lógica da auto-organização
1.1.4. A lógica paradoxal e o fechamento operacional

1.2. A nova epistemologia das ciências sociais e humanas
1.2.1. Novas ontologia, filosofia da história e teoria do conhecimento
1.2.2. Novo método e nova linguagem
1.2.3. O novo paradigma
1.2.4. O modelo e o objecto em ciências sociais

2. Do desejo ao sagrado, do sagrado à economia
2.1. O desejo mimético: suas figuras
2.1.1. O double bind do modelo/obstáculo
2.1.2. A mediação dupla e o desaparecimento do objecto
2.1.3. O mimetismo negativo
2.1.4. O «narcisismo» e a estratégia do impostor
2.1.5. A estratégia masoquista

2.2. O círculo da violência e o sagrado. As sociedades arcaicas
2.2.1. Da mimese de apropriação à mimese de antagonismo
2.2.2. A mimese de antagonismo ou a violência recíproca
2.2.3. Da violência ao sagrado e à cultura
2.2.4. O rito sacrificial: o controlo da violência
2.2.5. O controlo do desejo e a economia nas sociedades arcaicas

2.3. O sagrado e a sua substituição pela economia
2.3.1. O Sagrado e seu enfraquecimento
2.3.2. A méconnaissance como condição necessária ao sagrado e às sociedades arcaicas
2.3.3. A destruição da méconnaissance pela revelação judaico-cristã
2.3.4. Cristianismo histórico e ressacralização – a Idade Média
2.3.5. A crítica ao cristianismo sacrificial e o individualism – a sociedade burguesa

2.4. A economia como substituta do sagrado
2.4.1. Desejo mimético e «raridade»
2.4.2. «Raridade» é violência
2.4.3. «Raridade» e indiferenciação – a exclusão dos terceiros
2.4.4. A «ambivalência» da economia

3. Economia e sociedades liberais e industriaiis
3.1. As teorias liberais e neo-liberais e méconnaissance
3.1.1. O novo sagrado
3.1.2. Adam Smith, a simpatia e o amor-próprio
3.1.3. A teoria do equilíbrio económico geral: a questão da equidade
3.1.4. O utilitarismo: teleologia e sacrifício – Halévy e outros
3.1.5. A teoria da justiça de John Rawls e as «justas desigualdades»
3.1.6. Friedrich Hayek
3.1.7. Robert Nozick
3.1.8. Teorias liberais – uma crítica possível

3.2. Desejo mimético e Estados, potências: suas figuras
3.2.1. O Double bind do Modelo/Obstáculo: a «escassez» de matérias-primas e de recursos – as guerras modernas
3.2.2. Mediação externa e interna – a mediação dupla e a violência recíproca: “todos contra todos”
3.2.3. Mimetismo negativo
3.2.4. O narcisismo
3.2.5. O mecanismo sacrificial – o bode expiatório: “todos contra um”
3.2.6. O processo da escolha das vítimas

4. Da economia à violência; da violência ao futuro – o novo sagrado
4.1. Economia e guerra
4.1.1. Estratégias da rivalidade entre Estados pelo controlo dos recursos
4.1.2. O terceiro mundo como objecto de apropriação mimética e rival: o neocolonialismo
4.1.3. Economia e guerra: as vítimas das lutas rivais e não da «luta de classes»
4.1.4. Terrorismo e rivalidades. O negócio de armas
4.1.5. A luta rival como entrave social e ambiental

4.2. A questão do terceiro mundo: a divisão norte-sul, ricos e pobres
4.2.1. A rivalidade entre os ricos torna os pobres mais pobres?
4.2.2. Rivalidade, guerras e destruição ambiental: os pobres, as maiores vítimas
4.2.3. Que soluções?

4.3. A «contraprodutividade» como violência silenciosa
4.3.1. A contraprodutividade em geral e nos transportes
4.3.2. A contraprodutividade na saúde
4.3.3. Heteronomia e destruição ambiental
4.3.4. Heteronomia e Globalização

4.4. Da violência ao futuro – o novo sagrado
4.4.1 A instabilidade actual, bifurcação e possíveis atractores
4.4.2. Organizações Supra-nacionais
4.4.3. Será a não-violência possível?
4.4.4. Condições objectivas para o novo reino da Não-Violência
4.4.5. Relação simétrica e complementar – a aceitação do Supra-nacional
4.4.6. Não-violência e auto-organização
4.4.7. Condições para a mudança e sistema mundial auto-organizador
4.4.8. Os riscos das nanotecnologias e o futuro

5. Conclusão

Bibliografia

Anexos
Anexo 1 – Poema Genial invertido
Anexo 2 – Dia e Noite de Escher:
Anexo 3 – Esquema-Síntese do “Sistema” Girardiano