Tradução de Álvaro Pereira Mendes e Pedro Teixeira da Mota, que a contextualiza e anota.
Título original: «Modus Orandi Deum»
1ª. edição em 1524, acrescentada em 1525, impressas por Froben em Basileia
Entre o céu e a terra ergue-se, no fogo da oração intensa, a alma que se liga ao espírito ou que aspira a Deus.
Erasmo, o mais sábio dos estudiosos das primeiras décadas do séc. XVI, foi convidado, tal como Jesus há dois mil anos, a ensinar o que é o livre-arbítrio, a comunhão mística da Humanidade e os modos de oração e meditação.
O que emanando da Ideia e Palavra eterna se pronunciou na sua fina boca chega-nos hoje às mãos e almas, numa tradução fiel de Álvaro Pereira Mendes e Pedro Teixeira da Mota, enriquecida por valiosas anotações e uma biografia do suave pedagogo da piedade douta e da união da sabedoria pagã com a cristã, o impulsionador da vida criativa, independente e solidária.
Passados 500 anos, em que o nome de Erasmo não pereceu antes pelo contrário é o santo protector da dinâmica estudantil da Europa, esta obra, lúcida nas críticas aos costumes e mentalidades e luminosa no discernimento e nas revelações, é um colóquio acerca do sumo Bem e da religião verdadeira do Espírito transmitida por Jesus à Samaritana, que lhe deu água a beber, e que constitui a essência perene das religiões, tradições, pedagogias e terapêuticas.
MODO DE ORAR A DEUS
€20.00
Informação adicional
Peso | 500 g |
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ISBN | 978-989-8147-06-6 |
Ano | 2008 |
Edição | 1 |
Idioma | |
Formato | 16, 0x23, 0 |
Encadernação | Cartonada |
N. Pág. | 304 |
Colecção |
À Verdade e à Divindade.
Ao mestre Desidério Erasmo de Roterdão.
A José Vitorino de Pina Martins e a todos os que com tanto studium têm mantido vivas
e aprofundado as obras e ideias de Erasmo e dos humanistas.
Aos estudantes e professores, para conhecerem melhor o patrono do programa Erasmus, um peregrino do conhecimento e da concórdia, um pedagogo da verdade e da liberdade.
Aos cristãos e à hierarquia da Igreja, para que possam aprofundar o ensinamento
espiritual de Jesus com os labores de Erasmo e dos humanistas.
Aos que querem orar melhor, para conhecerem os ensinamentos de Erasmo, um mestre que merece ser dialogado na comunhão e comunidade dos amigos de Deus.
Aos europeus, para que saibam, com os ensinamentos de um dos fundadores da Europa pacifista, sábia, justa e livre, desabrochar tais potencialidades da alma europeia comunitária, supra partidária e supra nacional…
Aos leitores da língua portuguesa, tão privados de ler as obras de Erasmo, para se fortalecerem na
sabedoria e no amor divinos.
EIS-NOS com Desiderius Erasmus Roterodamus, Desidério Erasmo
de Roterdão, o principal mestre da Europa no século XVI, o líder
intelectual, o crítico das instituições e costumes, o renovador da
educação e do ensino, o pioneiro do estudo científico dos textos sagrados
e da complementaridade das letras humanas e das divinas, o unificador dos
campos opostos religiosos, o apologista da tolerância, do pacifismo e da
concórdia, o ressuscitador da “filosofia de Cristo” e da piedade íntima,
sábia e livre. «Homem por si só» há quinhentos anos e ainda hoje a
inflamar corações acima da ignorância e das facções, e a apurar almas na
realização da paz, da verdade, do espírito e da divindade.
Uma vida de viagens, estudos, traduções, comentários e escritos,
sobretudo textos educativos, filosóficos e religiosos, mas também muitas
lutas, incompreensões, polémicas e uma imensa correspondência, de
grande impacto na vida intelectual e religiosa do séc. XVI mas correndo
íntima e subterraneamente pelos séculos a dentro como fermento de
renovação anti-supersticiosa, anti-facciosa, anti-totalitária e libertadora.
Traduzir, apresentar, anotar e ler Erasmo no séc. XXI, num dos seus
tratados espirituais, é uma honra e um privilégio, pois iremos aprofundar
e amadurecer com ele alguns dos mistérios da vida e compartilhar a sua
lúcida compreensão dos modos de orar, pelos quais nos ligamos mais a
Deus e às suas bênçãos e graça.
Quis Erasmo chamar os seres humanos às fontes antigas da Sabedoria,
tanto a tradição sapiencial greco-romana como sobretudo a derivada de
Jesus e do seu ensinamento, a philosophia Christi, a filosofia de Cristo, ou
VII
seja, o amor da sabedoria, de Jesus Cristo, presente nos Evangelhos e,
dentro dos seus intérpretes, em especial, em S. Paulo, Orígenes (190-253),
Ambrósio (339-397), Jerónimo (347-419) e Agostinho (354-430), assim
citados no seu primeiro e famoso Manual do cavaleiro Cristão, o
Enchiridion, como aqueles cuja «interpretação é mais acomodada aos
sagrados mistérios», e que em 1520, na Ratio verae theologiae,o Método
da verdadeira teologia, serão reordenados, por ordem descendente de
valor: Orígenes, Basílio, Nazianzo, Atanásio, Cirilo, Crisóstomo, Jerónimo,
Ambrósio, Hilário e Agostinho, cujas obras publicou e comentou, numa
tarefa ciclópica de génio e de studium, hoje em dia quase impossível, então
caracterizadora de alguns dos mestres do Renascimento como Pico della
Mirandola, Leon Battista Alberti, Marsilio Ficino, Leonardo da Vinci,
Luca Pacioli ou Michelangelo Buonarroti.
Mas a esse estudo das letras humanas e divinas, desde Orfeu e Homero,
Platão e Horácio aos pais ou fundadores ortodoxos, como chamava aos
místicos e gnósticos padres da Igreja antiga, as fontes mais próximas de
Jesus e do Evangelho, acrescentava Erasmo tanto a importância de uma
vida racional, ética e dialogante, como também (já livre do cerimonialismo
desnecessário, da hipocrisia, corrupção ou superstição) a piedade douta, ou
seja, a boa (fundamentada, esclarecida) e profunda relação interior com
Deus e exterior com os humanos.
O que propõe então é o amar ou adorar a Deus em espírito e em verdade,
reflectindo-se num ânimo justo, bom e piedoso e na vida como oração
luminosa contínua, concretizada no serviço e clarificação (a glória) do bem
comum, do próximo, da verdade e de Deus. Certamente, com esforço,
conhecimento, ciência, plena atenção: o tão recomendado studium…
Para Erasmo a verdadeira teologia ensinada por Cristo é assim viver
pura, simples e virtuosamente, pela força interior divina que nos chama a
aperfeiçoar-nos na fé, na esperança e na caridade, pois o Espírito habita no
coração das pessoas piedosas. Daqui a sua valorização das Bem-
aventuranças.
É pela disposição anímica de seguir correctamente o Cristo («que é
caridade, simplicidade, paciência, pureza, ou seja, tudo o que ele ensinou
»), que o crente em Deus e nos seus mestres e santos avança na vida
e no aperfeiçoamento, para se tornar também um Cristo, que significa um
VIII
ungido: «todos os que renasceram em Cristo, são Cristos» (Da Concórdia
amável na Igreja).
A realização salvífica não está pois garantida por doutoramentos teológicos,
cerimónias, peregrinações, votos religiosos ou vida monástica, de
que aliás em muitos aspectos Erasmo é crítico, como vemos nos seus
famosos Colóquios que o tornaram tanto admirado por muitos, como
detestado pelos «bárbaros ignorantes» que recusavam o estudo das línguas,
culturas e tradições antigas, ou seja, a universalidade do conhecimento,
presente na Retórica, na Filosofia, na Poesia, na Ciência, na exegese livre
da Religião, e cujo cultivo e divulgação só faria bem à humanidade.
Uma das razões do grande sucesso na época da “filosofia de Cristo”,
designação antiga mas desenvolvida por Erasmo a partir da sua meditação
e do seu trabalho para uma versão mais fidedigna do Novo Testamento, e
depois desenvolvida nos comentários livres aos Evangelhos, as Paráfrases,
está na intuição e vivência em si de Cristo (palavra grega que traduz
o Messias hebraico, o Ungido ou ligado a Deus, e que é também, sobretudo
com S. João, Logos, ou seja, a Palavra, Verbo, Sabedoria, Razão, ou
discurso certo), em parte nascida da realização da presença divina (logóica,
diríamos) nos Evangelhos, onde ela respira e vive mais plenamente, e da
meditação.
Isto permite a Erasmo tanto recomendar incessantemente a leitura
sagrada, ou a oração a partir de palavras dos Evangelhos, como sobretudo
tornar vivos os ensinamentos e parábolas de Jesus Cristo, primeiro ao saber
estabelecê-los filologicamente mais correctos na versão que fez, magistral-
mente anotada, do Novo Testamento e, depois, nas Paráfrases, ao passar
constantemente do sentido literal para o espiritual, do passado para o
presente e o eterno, trazendo ao de cima a riqueza de sentidos transformadores
de muitas passagens que pareceriam destituídas de relação eficaz e
luminosa com a nossa mente e vida de hoje.
Um tão arguto observador, que tanto viajara e conhecera de pessoas e
sociedades, com as suas limitações animais mas também aspirações e
exigências de dignidade e espiritualidade, estava preparado tanto para a
ironia esperançosa como para a compaixão piedosa e por isso as suas obras
ora castigam rindo ora inspiram desejos de fraternidade e caridade,
impulsionando consciencializações ou mesmo voos espirituais.
IX
Para Erasmo a vida é uma luta pela ligação divina, sob o perigo
constante do enfraquecimento ou mesmo da morte da alma, quando a
dignidade, a racionalidade ou domínio das atracções e repulsões, ou
mesmo o desejo de solidariedade moral e de vida espiritual, falham. Com
efeito, dirá no Enchiridion,o Manual do cavaleiro Cristão: «quando os
olhos do coração estão obscurecidos para que não vejas a luz evidentíssima
que é a verdade, quando não captas com teus ouvidos interiores a Voz
divina, quando careces completamente do sentido do absoluto, pensas que
a tua alma estará viva? (…) Se o teu próximo é mal tratado, porque é que
a tua alma não sente nada?»
Duas são as armas ou as asas principais a utilizar, o conhecimento e a
oração. Conhecimento das letras humanas que naturalmente apoiam as
divinas, ou ainda, conhecimento da sabedoria perene, da tradição cultural
e espiritual de todos os povos e tempos; gnose de si próprio de quem não
é só corpo animal e genético, nem subjectiva e complexa personalidade ou
alma, mas na essência espírito, dotado de autoconsciência e lucidez, livre-
arbítrio e amor, capaz portanto de conhecer e amar a verdade, a unidade,
a Divindade.
Quanto à asa da oração, a procura do florescimento unificador do amor,
a descoberta e a coincidência da mente e da vontade com Deus Pai e com
o todo, deixemos Erasmo iniciar-nos com este pequeno tratado, o Modus
orandi Deum, publicado pela primeira vez pelo sábio impressor Johann
Froben, em Outubro de 1524, em Basileia, com sucesso pois surgem doze
edições até ao fim do ano da graça de 1525 graças a laboriosos impressores
de Estraburgo, Colónia, Nuremberga, Basileia, Cracóvia, Veneza, Antuérpia,
se bem que a sexta edição, que é uma versão bastante acrescentada e
corrigida por Erasmo, impressa de novo por Froben, em Março de 1525,
nunca será tomada em conta pelos editores posteriores, algo misteriosamente…
Na península Ibérica surgirá, embora só em 1546, uma impressão
espanhola na tipografia sevilhana de Andrés de Burgos, intitulada Tratado
de la oracion y forma que todo christiano deve seguir, pois de facto a
península estava muito desperta para a experiência da oração tanto vocal
como interior e mística, nomeadamente pelas influências mais remotas do
sufismo (o sadili) e mais próximas dos franciscanos (tal como Francisco
de Ossuna e o seu Abecedario), dos recolhidos e dos alumbrados (ou
X
dejados, abandonados ao amor de Deus) e do movimento de retorno às
fontes bíblicas, fortalecido pela acção do cardeal Francisco Jiménes de
Cisneros (1436-1517): confessor da rainha humanista Isabel a Católica,
arcebispo de Toledo, impulsionador de uma religiosidade mais esclarecida
e espiritual (embora pouco aberto à islâmica, da qual fez queimar muitos
livros), reformador das ordens religiosas, patrocinador de vários livros de
contemplação, fundador (1ª pedra, 1498; 1ª aula, 1508) da Universidade de
Alcalá de Henares (Complutum), e director da pioneira tradução da Bíblia,
a Poliglota Complutense, em oito grandes volumes, ali realizada entre
1514 e 1517, embora só impressa em 1520, já depois do Novum
Instrumentum, de Erasmo, vir à luz na tipografia “rival” de Froben…
Para além disso, preparando-se o príncipe Carlos para se tornar o
imperador do Sacro Império Romano (de origem alemã e unindo cerca de
300 estados da França à Polónia, governados sobretudo por sete príncipes
eleitores), rei de Castela (pela morte da rainha Isabel I, e da sua filha Joana,
a Louca, casada com seu pai Filipe, o Belo, de Borgonha) e de Aragão (pela
morte de Fernando II de Aragão, o marido de Isabel, que não teve filhos
do seu segundo casamento), e sendo Erasmo um dos seus conselheiros,
havia mais receptividade aos seus livros, pelo que logo em 1516, ainda ao
tempo do cardeal Cisneros saía em Sevilha a primeira tradução, por Diego
de Alcocer, secretário do príncipe, de uma obra de Erasmo, o Tratado ó
sermon del Niño Jesús y en loor del estado de la Niñez. E, em 1517, o
cardeal Cisneros, que exercia então o cargo de regente de Espanha, até à
chegada do príncipe Carlos em Setembro, convidaria por mais de uma vez
a vir até Espanha Erasmo que, embora não vindo, viu serem editadas ou
traduzidas muitas das suas obras (vinte e três edições entre 1516 e 1527).
A fortuna pública deste Modo de Orar a Deus, ainda que grande pelo
número das sucessivas reimpressões, encontrou contudo uma má madrasta
pelo caminho, a oposição da Universidade parisiense, a Sorbonne, naquela
época dominada pelos teólogos, uma «caverna de bandidos», reduto de
alguns fanáticos da escolástica, «formados no ódio às boas letras e à
tranquilidade pública», inimigos constantes da livre investigação e divulgação
do ensinamento de Cristo e, portanto, de Erasmo, sendo os principais
nos «furores», Noël Béda, o chefe da censura durante quinze anos, e Pierre
Cousturier (ou Sutor), retratados ironicamente por Erasmo nos colóquios
Sínodo dos gramáticos e Refeição de peixe.
XI
XII
Como já tinham encontrado mais de cem proposições condenáveis no
seu Novo Testamento anotado e nas Paráfrases aos Evangelhos (nomeadamente,
o querer traduzir as santas Escrituras em todas as línguas…),
também teria de ser atalhada ou dificultada a nova incursão de Erasmo na
messe do Senhor, baseada num ardente sentido de justiça e de piedade e
num rigor da exegese filológica e conceptual dos textos sagrados, ensinando
todos os cristãos a orarem de modo sábio, consciente e livre, e apelando,
justificadamente, a tornarem-se mesmo profetas e sacerdotes pelo
ungimento do Espírito e, portanto, verdadeiros adoradores de Deus em
espírito e em verdade.
Em 1526 e 1527 surgem as primeiras censuras parisienses, às quais
Erasmo responde, quer justificando-se quer demonstrando a ignorância ou
o facciosismo de Sutor e Béda. Em Valladolid, em 1527, reúne-se mesmo
uma assembleia de teólogos convocados pelo benigno Inquisidor Geral
Alonso Manriques para debaterem essas proposições ou doutrinas duvidosas,
encontradas, segundo alguns frades e teólogos, tanto no Novo Testamento
como no Modo de Orar a Deus, encontro que descreveremos mais
à frente. Regressado a Paris, um desses opositores de Erasmo, o teólogo
“sorbónico” Diogo de Gouveia, escreverá algo arrogantemente ao rei
D. João III em Setembro de 1527, dizendo que se «deram a visitar os
outros livros a saber anotações, enchiridion, de modo orandi» e que se
preparam para o condenar e que não sairá vencedor: «será melhor que não
escrevera em outra coisa senão em histórias e crónicas de príncipes»…
Em França, morto já Erasmo, nos primeiros catálogos de livros proibidos
pela Sorbonne, de 1543, 1544 e 1551, estava incluído o piedoso Modus
orandi Deum. Mas em 1547, no primeiro rol português dos livros defesos
ou proibidos, reproduzindo o que a Universidade de Lovaina acabara de
fazer (no ano em que, ao contrário, na Inglaterra as Paráfrases aos
Evangelhos se tornavam obrigatórias, com a Bíblia, para todos os sacerdotes
e paróquias), só eram indicados o Elogio da Loucura, o Modo de
confessar e os Colóquios, tendo estes até sido publicados, em 1546, com
as aprovações de vários professores e teólogos da universidade
conimbricense, numa edição escolar (de que se conhecem hoje só dois
exemplares) da autoria do erasmiano Juan Fernandez, professor de retórica
na mesma Universidade, que a realizara com suma mestria ao conciliar
cortes de censura, explicações amenizadoras e a tradução integral de vários
colóquios, com as ideias e críticas de Erasmo, então já considerado autor
perigoso e danado.
Todavia, em 1557, no segundo rol, entre as treze obras de Erasmo
visadas (de novo baseado no de Lovaina mas com acrescentos portugueses),
já aparecia o Modus orandi Deum, em latim e em vulgar, pois em
1546, na tipografia sevilhana de Andrés de Burgos, saíra o Tratado de la
oracion y forma que todo christiano deve seguir, e que, dentro da
permeabilidade do bilinguismo da época, terá circulado nos meios piedosos
e cultos portugueses, justificando-se assim a sua drástica quão absurda
proibição portuguesa. E no Index auctorum dannatae, impresso em Lisboa
em 1624, condenam-se oito partes, algumas extensas, do Modus orandi
Deum, segundo a versão inserida na Opera Omnia de 1540.
Passados quinhentos anos, certamente não há razões para proibições,
antes pelo contrário, o valor religioso e cristão, para além de pedagógico,
científico e espiritual de Erasmo, está mais do que reconhecido e, esta obra,
na sua piedade (no sentido até greco-latino, onde significava o estar em boa
relação com o divino) e simplicidade (mas também profundidade para
quem a sondar e viver), em verdade entusiasma a alma e estimula à oração
contínua, ao melhor conhecimento das letras divinas, bem como à
fraternidade, ao amor e ao aprofundamento da oração, através mesmo dos
santos e dos anjos, capazes de induzirem a consciencialização do espírito,
a quietude contemplativa e a unificação íntima com Deus.
Que ela seja acolhido por corações jubilosos por poderem beber na
Fonte Divina, a que estas páginas tanto sabem e conduzem!
E se sentirmos alguma vez a expressão intercessora «Magister Erasme,
ora pro nobis, sive in nobis», Mestre Erasmo, ora por nós, ou em nós, ou
connosco, ela será a expressão do reconhecimento de um dos seres
humanos que mais conheceu, se aproximou e transmitiu o ensinamento e
o espírito de Jesus, e do Logos.
Não pode, por motivos de saúde, ser esta obra prefaciada (e certamente
melhorada) pelo notável estudioso do Humanismo, e humanista, José
Vitorino de Pina Martins, por muitos anos presidente da Academia das
Ciências de Lisboa e director do Centro Cultural de Paris da Fundação
Calouste Gulbenkian, autor de vasta e luminosa obra sobre as ideias,
autores e livros do Humanismo, esse movimento nos séculos XV e XVI de
XIII
XIV
retorno renovador às fontes da cultura clássica e das tradições religiosas,
dentro de uma visão optimista da dignidade, perfectibilidade e concórdia
da universalidade humana, tendo em vista o renascimento do ser humano
livre, investigador criador, culto e espiritual. Ao longo dos anos de
convívio e de trabalho, por mais de uma vez pensamos traduzir e comentar
em conjunto a famosa Oração da Dignidade Humana, de Pico della
Mirandola, o texto do desabrochar primaveril do Humanismo cristão, que
em Erasmo atingirá a frutificação.
Entretanto, germinou a ideia de traduzir uma obra religiosa pouco
conhecida de Erasmo e o Dr. Álvaro Pereira Mendes, um latinista de longa
formação, acedeu a redigir a primeira versão da tradução, a que se seguiu
uma prolongada revisão, e em algumas partes nova versão, por mim, mais
dentro da espiritualidade humanista (para além de uma prática de oração
e meditação, e uma maior disponibilidade de investigar o Humanismo
cristão de Erasmo), e, após vários encontros de harmonização das leituras
propostas, e um prolongado studium, investigação e meditação do texto,
completávamos a tradução, que veio porém ainda a ser cotejada com a
2ª versão redigida por Erasmo em 1525, uns meses depois da 1ª. Tivemos
então de acrescentar várias passagens, para serem de novo vistas e revistas,
surgindo finalmente a primeira tradução portuguesa directamente do latim
deste importante tratado acerca da adoração a Deus, mas que ainda assim,
apesar de tanto studium, certamente terá algumas imperfeições…
O Prof. José V. de Pina Martins, sem dúvida inspirador indirecto desta
obra, pelo amor a Erasmo, a Tomas More, a Giovanni Pico della Mirandola
e ao Humanismo que compartilhou comigo, ao ler-lhe a introdução,
agradeceu e felicitou, considerando-a bem importante para a sociedade
portuguesa, augurando uma renovação erasmiana em Portugal.
Uma breve biografia cronológica, para introduzir os leitores na vida e
obra de Erasmo, cresceu um pouco ao longo da gestação mais demorada
do que se previa do livro, conservando-se porém no modelo menos erudito
sem anotações, reservando-se essas apenas para o texto do Modo de Orar
a Deus, registadas no fim do livro. Certamente que haverá falhas, dada a
grandeza e complexidade erasmiana e humanista. As citações foram em
geral traduzidas dos originais latinos, e as citações de outros autores serão
devedoras dos seus trabalhos, mencionados na bibliografia, que inclui só
obras lidas, no todo ou em parte.
À Maria de Lurdes Oliveira, praticante da oração e meditação, pelo
desenho e a concepção da capa, a José Moreira, jovem editor de textos efilho de tipógrafo da velha guarda, pela paginação, e a Álvaro Pereira
Mendes, pelas pacientes revisões e sessões, a nossa gratidão cordial.
Para a tradução utilizamos ao princípio o exemplar do Modus orandi
Deum, impresso por Ioannes Maire, em Leiden, então denominada Lugduni
Batavorum, ou seja, dos Batavos, hoje os Holandeses, datado de 1641,
quando editaram no formato pequeno, o in-octavo, em 17 volumes, uma
parte da obra de Erasmo. Em seguida tal exemplar foi comparado ou
cotejado, não com a edição original de 1524, de Froben, inexistente nas
bibliotecas públicas portuguesas, mas com um exemplar da Opera Omnia,
de 1540, impresso ainda em Basileia na mesma oficina frobeniana dos
amigos de Erasmo, e que a notável biblioteca da Academia das Ciências de
Lisboa possui, tendo confirmado a existência de algumas manipulações,
que no texto serão anotadas.
Como anota, a propósito desta edição de Leiden, José V. de Pina
Martins no catálogo Erasmo Essencial, da Academia das Ciências de
Lisboa, 1995, «mais de vinte edições tinham sido publicadas antes de
1641. Aparecido em 1524, este livrinho erasmiano estava destinado, com
o Enchiridion militis christiani, a exercer uma influência espiritual profunda
na península Ibérica». Que assim seja…
Tentamos cumprir a nossa tarefa de dá-lo à luz na língua portuguesa
afastando-nos o menos possível das palavras empregadas por Erasmo,
numa tradução bastante literal, aliás como ele próprio recomendava: «num
tradutor, mais ainda que num historiador, a fidelidade é o que mais se deve
louvar».
Apenas não respeitamos o texto original ao intervirmos na pontuação,
sobretudo criando mais parágrafos (o livro, no original, como era frequente
até meados do séc. XVIII, não tem pontos parágrafos) e pondo com
maiúscula (numa regra flexível) algumas palavras mais sagradas, havendo
ainda uma meia dúzia de correcções de erros tipográficos, e não só…
De facto, temos de confessar (agora nuns parágrafos, ao estilo de
ficção), já quase nas vésperas da entrega do livro para a paginação,
constantemente adiada como é costume nos partos difíceis, decidi ir à
Academia das Ciências de Lisboa, esse baluarte do conhecimento em
Portugal, consultar a Opera Omnia de Erasmo, de 1540, e aí confirmar
XV
algumas dúvidas quanto à fiabilidade do texto, o que já me tinha levado a
falar para a Maison de Erasme em Bruxelas, ao director Alexandre
Vanautgaerden, pedindo-lhe para cotejar com a edição original um parágrafo
que sabia ter sido criticado por alguns teólogos na época. Mas, desde
logo, ao sincronizar (na minha pessoa e acto…) as páginas gigantes do
formato in-folio das Opera Omnia, com as páginas pequeninas do formato
in-octavo da edição de 1641, deparei-me com a evidência de a obra ter sido
manipulada pelo editor Joannes Maire, ou por quem lhe preparou a edição.
Há portanto três passos importantes, alterados já não por gralhas tipográficas
mas por censura doutrinal, os quais, corrigidos por mim, foram
assinalados em notas, de modo a respeitar-se o pensamento exigente, e
acima das doutrinas e desvios humanos, de Erasmo. Em posteriores
consultas e cotejos, mais extensos, verificamos noutras partes do livro
pequenas divergências mas pouco significativas, senão mesmo gralhas.
Embora sabendo a partir de dado momento desta investigação e tradução
que existia uma tradução em inglês do Modus orandi Deum, publicada
na Toronto University Press, decidira-me contudo a não a adquirir tanto
para não sermos influenciados como por ser cara. Contudo um dia,
apercebi-me, através da internet, que nessa tradução, de que me eram
facultadas três páginas para leitura, existiam acrescentos, realizados na
segunda edição de Froben, de Março de 1525, cuja existência eu desconhecia,
e que lhes servira de base para a tradução. Para sabermos do conteúdo
dessas alterações tivemos de esperar algum tempo para podermos adquirir
essa tradução canadiana, lermo-la e, eventualmente transcrevê-la ou resumi-
la, inserida nesta nossa tradução.
A obra acabou por ser mandada vir através de um alfarrabista alemão,
que a vendeu a um preço muito razoável, mas de novo houve um
contratempo, pois enviando-a para a minha morada, assinalou o nº 102 em
vez do nº 103, levando o carteiro a devolver a encomenda para a Alemanha.
Semanas de espera, interrogações da minha parte, até receber a explicação
que estivera de férias nas montanhas da Suíça e só agora tinha dado com
os olhos no livro devolvido.
Só ao recebermos o livro nos apercebemos da extensão dos acrescentos,
cerca de 17% do total. A partir desta constatação tornou-se imperioso
encontrar o texto latino completo, ausente de Portugal, pois o mais antigo
por cá existente, na Biblioteca Nacional, é a edição de Paris, de Charles
XVI
Wechel, de 1539, já a décima sexta da obra mas que, como as demais,
continuou a reproduzir a edição original ou princeps. De facto, os tais
acrescentos de Março de 1525, acabaram por nunca mais serem publicados
em vida de Erasmo, nem sequer na edição (quase oficial) da Opera Omnia
ou Obras Completas de 1540, provavelmente porque os seus amigos
editores não tiveram à mão, ou desconheciam, essa segunda versão.
Ao tomarmos conhecimento de que na reimpressão das Obras Completas
de Erasmo, em latim, realizada na Holanda a partir dos anos 1969
estava reproduzida a versão de 1525, tínhamos agora a tarefa de a adquirir
ou consultar. Esgotada, inacessível mesmo nos alfarrabistas, haveria que a
encontrar em alguma biblioteca pública ou privada portuguesa. Na Biblioteca
dos Estudos Humanísticos de José V. de Pina Martins, só estava a
edição de 1705. Artur Anselmo, que encontrei por duas vezes na Biblioteca
da Academia das Ciências de Lisboa, quando cotejava a edição de 1641
com a de 1540, confessou-me que tinha apenas a mesma edição de 1641.
Na Biblioteca Nacional, não existia outra que a de 1539. Na Faculdade de
Letras de Lisboa, também não. Até que, através de Dalila Pereira da Costa
e de Maria João Reynaud, consegui chegar à fala com João Emanuel Leite,
o director da Biblioteca da Faculdade de Letras do Porto que, com a base
de dados no computador à frente, me confirmou logo pelo telefone a
existência em vários volumes da dita reimpressão. Eis-me a partir num dia
de chuva, de comboio, e a chegar por fim à Faculdade de Letras do Porto
e à almejada obra sem a qual não poderia concluir com fidelidade a
tradução, em parte já quase terminada.
Para ter ainda mais uns momentos de romance de aventuras, indicada
a cota pelas simpáticas bibliotecárias, deparei-me, na prateleira, junto ao
chão, com cerca de 17 volumes das obras completas de Erasmo, nos
originais latinos, e um após um, foram-me negando o prazer de encontrar
o Modus orandi Deum. Olho para os lados, mas nada das mesmas
encadernações editoriais. Regresso ao atendimento, e a outra bibliotecária
procura na base de dados se o livro em falta teria sido emprestado. Ah, de
facto está aqui um volume que foi emprestado. Quem foi, não se pode
dizer, mas sabem quem é, e está adoentado, talvez possa ceder o livro. Mas
será mesmo o volume que eu procuro o que ele tem? Observação mais
cuidada nos cerca de 35 volumes da Opera. Ora eu só vira uns dezassete.
A bibliotecária faz então favor de me acompanhar às estantes e eleva-me
XVII
os olhos para o alto, e lá luzem as estrelas, digo, os volumes em falta. Mais
entusiasmo na demanda e por fim o Modus orandi Deum está nas minhas
mãos, na versão acrescentada e corrigida de Março de 1525, permitindo-
me assim ler, conhecer e traduzir os acrescentos e variantes. Todo este
tempo em que, por estas fatalidades, a publicação nossa se foi demorando,
as minhas leituras, reflexões e meditações erasmianas foram aumentando,
melhorando no fundo, e também alongando, tanto a biografia como
sobretudo as notas, que aliás poderiam ser quase infindáveis…
Voltando ao processo da tradução, quando havia uma palavra portuguesa
quase igual à latina, por vezes preferimos traduzir por outra, para abrir
o leque das significações, inserindo-se porém o vocábulo latino entre
parênteses. De facto, para quem quiser, ao ler a obra, confrontar as opções
de tradutores, que não querem ser traidores, transcrevemos frequentemente
a palavra latina, em itálico, entre parênteses, nomeadamente as mais
significativas ou ricas, permitindo aos leitores e leitoras escolherem ou
intuírem outra possível tradução, talvez a que lhes diga mais no seu
momento e estado anímico.
É o caso das possuidoras de significados mais espirituais, como as que
exemplificamos: vehemens – veemente, ardente, com força; virtus –
virtude, carácter, força interior ou capacidade da acção justa e eficaz;
clarificare – clarificar, manifestar luminosamente ou glorificar; pius –o
piedoso, devoto, cumpridor dos deveres, justo, santo, religioso ou espiritual;
studium – estudo, esforço, conhecimento, concentração, entusiasmo,
amor; placitus o que agrada, concorda ou é plácido, grato; minister –o
serviço e o ministério; charitas – a caridade e o amor; raptus, do verbo
rapio – raptada, arrebatada, erguida ou incendiada, e tantas outras…
Sentirão provavelmente assim ressonâncias das raízes latinas do nosso
semiconsciente falar e pensar, e enriquecerão tanto a capacidade de
abranger muitos séculos da história intelectual da humanidade como o
pecúlio de vocábulos, significações e consequentes conexões neuronais.
Isto aperfeiçoará a fluidez do discurso ou palavra (sermo) bem como a
profundidade de discernimento do intelecto e a gratidão do ânimo…
Esta copiosa inserção de vocábulos latinos, uma vez que o texto
bilingue seria demasiado oneroso, serve ainda para entusiasmar potenciais
estudantes de latim, a única em que Erasmo falava e escrevia, então a
língua franca da Europa, bem mais rica e profunda que qualquer outra que
XVIII
XIX
se lhe venha substituir, para não a deixar quase morrer, tão menosprezada
está pela moderna educação, cada vez mais tecnológica e menos humanista.
Quanto aos cerca de doze vocábulos em caracteres gregos que Erasmo
conservara, foram transliterados e estão em cor negra forte, distinguindo-
-se dos latinos que vão em itálico, entre parênteses. Entre colchetes [ ], vão
palavras subentendidas, ou que continuavam as citações bíblicas, mas não
transcritas por Erasmo. Concordamos e seguimos Erasmus (ou Erasmo, já
que utilizaremos as duas grafias), conforme nos diz no Enchiridion, Cap.
Das três partes do Homem, espírito, alma e carne, de acordo com Jesus,
S. Paulo, Orígenes e a Tradição perene, quanto à visão tripartida do ser
humano: corpo ou carne, alma (psiche, em grego, anima, ou animus, o
ânimo no seu aspecto mais activo ou determinado), e espírito (nous ou
pneuma, em grego, e spiritus), sendo este a «verdadeira semelhança da
natureza divina» em nós, e «sendo por esta parte que nos conglomeramos
e nos tornamos um com Deus, por Ele libertos». Assim onde está spiritus,
vertemos espírito, enquanto que traduzimos animus por ânimo, como o
aspecto mais determinativo da nossa alma (anima), esta significando a
nossa entidade psíquica, tanto com os sentimentos como com os pensamentos.
Já a palavra mens, que em geral traduzimos por mente, que tanto
é a tradução do nous, espírito em grego, como também a dos níveis
superiores da mente, nomeadamente os do intelecto, ou que estão em
ligação com ele, e que se abrem e tocam mesmo o espírito.
Lembremos ainda que na tradução dos passos do Novo Testamento,
consultamos não só a Vulgata (tanto na versão latina realizada por
S. Jerónimo, como também na versão em português, na Bíblia de Jerusalém
ou na Bíblia dos Capucinhos) mas, sobretudo, a versão original de
Erasmo, no in-folio ou grande volume, da edição de 1705 Opera Omnia,
impressas por Petrus Vander, em Leiden, Holanda, além de consultarmos
esporadicamente as versões antigas de Henri Estienne e de Benito Arias
Montano. Este aspecto, que pode levar as pessoas a estranharem uma ou
outra passagem, nomeadamente as do Pai-Nosso, deriva do facto de
Erasmo procurar quebrar coisificações e rotinas, expressões gastas ou
secas, para ressuscitar, da letra do texto, o espírito eternamente vivificador.
O mesmo se passou connosco ao traduzirmos, ao tentarmos discernir ou
mesmo intuir a palavra mais libertadora ou provocadora na nossa consciência
dos sentidos mais desvendadores a todos os níveis da realidade e,
no caso, dinamizadores em nós da oração sem cessar e da melhor relação
com Deus e com a vida.
Fatalmente, e repetimos, uma tradução como esta, realizada a partir do
original latino, terá algumas imperfeições nas palavras escolhidas, nas
frases idiomáticas, na interpretação dos sentidos e na uniformização de
nomes estrangeiros, em geral mantidos, só se traduzindo alguns dos que
circulam desse modo entre nós. Também na biografia de Erasmo e nas
notas que acompanham o Modo de Orar a Deus, dada a vastidão, riqueza
e subtileza dos temas tratados, nomeadamente Erasmo e erasmismo, Cristo
e cristianismo, Humanismo, Reforma e Oração, será quase impossível
evitarem-se, para além das tão fiéis gralhas, algumas imprecisões e
sobretudo omissões de contributos valiosos de estudiosos de Erasmo,
portugueses e estrangeiros, que gostaríamos de ter podido ler e citar na
bibliografia, enriquecendo este studium, embora talvez avolumando e
onerando demasiado o Modo de Orar a Deus.
De isto tudo pedimos sinceramente as nossas desculpas, esperando
corrigi-las na próxima edição, para a qual aguardamos com entusiasmo,
dada a profundidade sacramental deste presente oferecido por Erasmo, as
vossas sugestões, críticas ou colóquios, por carta para Publicações
Maitreya, ou por mail para viva.erasmo@gmail.com.
Segue-se então uma biografia cronológica de Erasmo, um resumo contextualizante
deste tratado acerca dos modos de orar e de nos aproximarmos
de Deus e, finalmente, a tradução do Modus orandi Deum, com as anotações
nas últimas páginas e uma bibliografia. Quem quiser poderá entrar já
directamente no Modo de Orar a Deus, possível de ser lido sem notas ou,
aprofundando o que ali é dito, consultando-as. A opção por margens
grandes, sobretudo no texto de Erasmo, para a inserção das
referências bíblicas e por respeito e sentido estético, visa
ainda permitir anotações, a fim de continuarmos o
diálogo criativo com Erasmo e a sua
mensagem que, como disse o seu
amigo John Colet, não
perecerão.
Valete
XX
II – BIOGRAFIA DE ERASMO DE ROTERDÃO
Onascimento do fino e arguto Erasmo, aliás Desiderius Erasmus
Roterodamus, ainda hoje continua um mistério, pois não se
sabe se terá nascido em 28 de Outubro de 1467 ou de 1469
(embora seja este o ano mais provável), em Roterdão, na Batavia, hoje
Holanda então território dos duques de Borgonha. De igual modo, pouco
se sabe sobre o seu pai, Gerardo, um jovem religioso itinerante, sendo este
o seu segundo filho, e sobre sua mãe, Margarida Brandt. Deram-lhe o
nome de Erasmo, um santo popular na região, mas também querendo dizer
em grego, amado. Já Desidério é um acrescento posterior voluntário e
significativo, pois quer dizer desejo, prazer, anelo.
Foi educado pela mãe em casa da avó materna e frequentou as escolas
de Gouda desde os quatro anos, a da catedral de Utrech, onde foi menino do
coro e, desde 1478, a de S. Lebuíno, em Deventer (Sete Montes), esta última
de um grupo cristão então importante, os Irmãos da Vida Comum (ou
Simples), nascido em meados do séc. XIV, da acção de Geert Groot
(1340-1384), um amigo do famoso místico, Ruysbroeck, cuja obra chegará
até mesmo aos círculos espirituais quinhentistas portugueses.
Dada a influência deste grupo no movimento da pré-reforma da Cristandade,
bem como no Humanismo de Erasmo e do norte da Europa, mais
corporativo e prático, na combinação fé, moral e obras, do que o
Humanismo pioneiro da Itália, mais aberto ao singular estudo e concórdia
de todas as tradições culturais e religiosas, deter-nos-emos um pouco nele,
tanto mais que foi um dos muitos fermentos da passagem da Europa
medieval para o Renascimento e a Modernidade
XXI
Geert Groot, natural de Deventer, doutorou-se em Artes em Paris e
aprofundou o estudo e a prática de medicina, astronomia, magia e teologia.
Desenvolveu uma grande paixão pelos livros antigos, procurando manuscritos,
fazendo-os copiar e emprestando-os. Em 1374 converteu-se pela
acção de Aeger, prior de um convento dos Cartuxos e, depois de doar os
seus bens e oferecer a sua morada para uma casa de Irmãs, com a vida em
comum, partiu para uma via de interioridade e desprendimento. Em 1377
conheceu o sacerdote Jan van Ruysbroeck, que visitou bastantes vezes,
inebriando-se na ardência espiritual que ele, então com 84 anos, depois de
ter escrito em holandês alguns tratados, tal como as famosas Núpcias
Espirituais, reveladores do alto grau de união a Deus a que chegara,
transmitia no seu convento agostinho nos bosques, tão frequentados pelos
eremitas, de Groenendael (onde o místico Taulero também esteve) mostrando
como era possível um coração abrir-se à luz e ao amor divino, ou,
como Erasmo dirá mais tarde na Instituição do Matrimónio Cristão, «o
Espírito santo habitar no coração das pessoas devotas».
Ordenou-se diácono em 1379 para pregar e reformar a religião, o que
fez estimulando a virtude e a oração, e criticando os clérigos dissolutos, os
heréticos e o excesso de mendicantes em vez de apóstolos. Um dos seus
amigos e discípulos, o sacerdote Florens Radewijns, propôs em 1381 que
se juntassem os copistas (de manuscritos, os fratres de penna) e colaboradores
numa casa comum e deste modo ficaram mais protegidos os Irmãos
da Vida Comum, nome este designando em especial, na linha de
Ruysbroeck, tanto a comunidade de bens como o facto da realização
contemplativa ser partilhada, tornada comum, na vida activa.
Morrendo Groot em 1384, Florens funda em 1387 uma congregação de
canónicos regulares de S. Agostinho, cuja primeira abadia é em
Windesheim, e que chegará a ter mais de cem casas irradiando por toda a
Europa graças à sua piedade moderna, ou seja, autêntica e activa, sem
superstições, assente na oração, nos Evangelhos e na caridade de Cristo
vivo, acessível a todos, fermento de renovação eterna das almas.
Nas suas obras devocionais, Groot cita os clássicos antigos e, em
especial, os mais religiosos, Séneca e Cícero. Critica a escolástica, o
sistema teológico da época demasiado baseado na arte da disputa, de
sentenças e proposições abstractas, e valoriza a realização interior dos
simples, que pela fé, a pureza e a oração conseguem receber a graça
XXII
santificadora e libertadora. Assim, os irmãos e cónegos vão aliar ao culto
das letras humanas uma ligação afectiva e interior com Jesus, o regresso
à pureza do cristianismo primitivo e um trabalho social de assistência aos
desvalidos e de ensino às crianças, nessa época a serem acolhidas assim
nas primeiras escolas públicas abertas a todos, numa vida simples, de
humildade e de partilha.
Chamou-se devotio moderna a este movimento porque, em contraste
com a devoção anterior, muito condicionada pela armadura especulativa e
escolástica, tão dependente das autoridades e sentenças, libertou a condição
de religioso e a metodologia da oração e da meditação de várias dessas
peias limitantes, aprofundando o sentido vivencial interior, renovando-o e
incarnando-o num modo de vida ao serviço de Deus e da comunidade, pois
a caridade dinâmica com o próximo era a principal prova do amor a Deus.
A orientação dos Irmãos da Vida Comum, laicos ou religiosos, ao tempo
de Erasmo, tinha já duas linhas: a que desdenhava dos estudos clássicos,
poesia e filosofia, mormente dos autores pré-cristãos, e a linha mais avançada
que privilegiava a interioridade espiritual ou mística mas acompanhada
ou fortalecida pela cultura e sabedoria antiga, e que teve mestres como os
humanistas Rudolfo Agricola e Alexandre Hegius, com milhares de alunos.
A obra que circulará por toda a Europa foi a Imitação de Jesus, escrita
por Thomas von Kempis, discípulo de Florens Radewinjs, um diálogo
pleno de humildade, submissão e devoção amorosa, mas de qualquer modo
propondo a imitação de Jesus. Houve mais irmãos a distinguirem-se na
literatura de espiritualidade, como Gerlac Peters, outro discípulo de Florens,
autor de um valioso Soliloque Enflammé avec Dieu, pour rapeller son
esprit de ses dissipations et le ramener vers le bien unique et suprême,
Geert Zerbolt de Zutphen, autor das Ascensões Espirituais, e Jean Wessel
Gansfort, que ensinou o método da escada meditatória onde, em relação à
comunhão, afirmava ousadamente a presença de Cristo em qualquer
pessoa que o invocasse sincera e merecidamente, numa linha já próxima
da justificação ou salvação sobretudo pela fé e pela graça. Queria aprender
o hebreu, valorizava os estudos bíblicos e morreu em 1499, pelo que
Erasmo poderá tê-lo conhecido ou recebido algumas forças anímicas dele.
Os anos em que o jovenzinho desabrochou para a inteligência num meio
como Deventer, um grande centro cultural e do começo da tipografia, onde
se publicaram cerca de 450 “incunábulos”, ou seja, livros do berço (cuna)
XXIII
ou início da tipografia (o que se considera ir até 1500), devem ter sido
determinantes na sua vida e seria interessante sabermos quando terá, pela
primeira vez, espreitado ou entrado numa oficina tipográfica a funcionar,
com todo o entusiasmo que o dar à luz os filhos do espírito gera em todos
os que participam ou presenciam, e o que sentiram os seus olhos e alma,
ele que viria a ser um dos primeiros escritores europeus a fazer a sua vida
e fortuna nelas, ainda que martirizada por tanto ataque, censura e polémica.
Tem então a felicidade de contactar os humanistas Jan Synthen,
Alexander Hegius (1433-1498), director do colégio de St. Libuíno, bem
como o seu mestre, que admirou, como se lerá num dos Adágios (Canis in
balneo), Rudolpho Agricola (1442-1495, discípulo do notável místico e
matemático Nicolau de Cusa), pioneiro no norte da Europa do
aprofundamento da tradição greco-latina unida ao cristianismo que caracterizava
o Humanismo, recebido ou aprendido na Itália durante onze anos,
destacando-se como renovador da Dialéctica e da Retórica, analizando
detalhadamente as estruturas delas subjacentes à poesia e à literatura
clássica (no De inventione dialectica, estudado e divulgado por Erasmo,
tornando-se mesmo, com uma obra congénere de Lorenzo Valla, a nova
metodologia então adoptada pelo ensino mais humanista). Agricola terá até
um dia, lendo uma composição premiada de Erasmo, então com 14 anos,
e encarando-o demoradamente, profetizado que viria a ser um grande
homem, como nos refere Pierre Bayle no seu Dictionaire Historique et
Critique, embora haja também a versão do humanista Beatus Rhenanus (o
alsaciano Bild de Rhynow) de que teria sido outro professor, Jan Synthen…
Até 1483, aprende nessa escola perto de Roterdão, onde certamente foi
bem impulsionado no desabrochar do seu génio literário. Mas, com a morte
da mãe e logo depois do pai, numa epidemia de peste, em 1484, os tutores
forçam-no a partir para a escola dos pobres (domus pauperium) de
Hertogenbosh (a cidade onde viveu até 1516 o misterioso pintor Jerónimo
Bosh), também dos Irmãos da Vida Comum, mas que, já sem abertura
humanista, antes pelo contrário muito na linha da humildade, da penitência,
do afastamento do mundo e da cultura não religiosa, atrasa de certo
modo durante três anos o seu desabrochar cultural, como ele próprio dirá.
Em 1487, com dezoito anos, algo forçado pelas circunstâncias e alguma
pressão dos tutores, pelo pudor ou temperamento tímido e pelas febres
(«desde a minha infância tive sempre um corpo frágil, de uma textura
XXIV
XXV
muito pouca densa, como os médicos dizem, facilmente exposto às agruras
climáticas»), aceita ingressar no convento dos cónegos regulares de
S. Agostinho, em Emaús, Steyn, perto de Gouda, ligado aos Irmãos da
Vida Comum e à devotio moderna, pronunciando os votos de religioso no
ano seguinte. Pode aí, apesar das tarefas e horários da regra de vida
comunitária, dedicar-se à poesia, à leitura e ao estudo dos autores clássicos
(Virgílio, Horácio, Ovídio, Juvenal, Séneca e Cícero, cujo livro De Officiis,
Os Deveres, sempre valorizará) e até dos humanistas italianos (como
Lorenzo Valla, Eneas Silvio Piccolomini, Guarino de Verona e Poggio),
para além de cultivar, como era então moda, o amor ou a amizade ideal na
forma epistolar íntima, com alguns monges animados do mesmo zelo
estudioso, tornando o convento num foco de estudo das letras antigas e
humanas e não só divinas e cristãs, numa espécie de comunidade ideal dos
cultores das letras e das virtudes, uma «república literária».
É ordenado sacerdote em 25 de Abril de 1492 por David de Bourgogne,
arcebispo de Utreque, começando a redigir então o seu primeiro livro De
contemptu mundi, Do menosprezo do mundo, na linha do De vita solitaria
de Petrarca (1304-1374), com quem se considera começar o Humanismo,
enquanto amor e aprofundamento da exemplariedade da Antiguidade.
Neste ensaio, Erasmo demonstra com grande cópia de citações da tradição
pré-cristã, de Pitágoras às fabulosas Sibilas, como o desprezo dos bens
mundanos, ilusórios e fugazes, é natural em quem segue a via da sabedoria,
e como o caminho da felicidade consiste sobretudo na visão do mundo
espiritual e divino, para a qual o estudo e a contemplação sossegada da
sabedoria antiga e da cristã são o melhor meio.
Neste sentido afirmará «os pagãos que só conheciam a luz da Natureza
não estavam na escuridão mas eram iluminados pelos raios que brilhavam
da luz imortal e nós podemos usá-los como escadas. Porque aquele que
tenta escalar as ameias do céu cai no desagrado de Deus, mas o que sobe
degrau a degrau não será derrubado». Na parte final, fazendo de advogado
do diabo da causa que defendera tão persuasivamente, tenta dissuadir os
que pensariam que só num convento se pode atingir esse estado celestial,
tanto mais que na época muitos entravam por pressões familiares, emocionais,
reactivas e pouco fundamentadas numa verdadeira vocação.
Num ambiente propício ao estudo mas também eriçado pelas barreiras
dos cerimonialismos, costumes e ignorância, Erasmo sente fortemente as
limitações da vida monástica, tanto mais que o prelado superior, assustado
com o desabrochar humanístico de alguns membros da comunidade, o
mandara parar de estudar e de escrever. Escreveu então o Antibarbarorum
liber primum, o Antibárbaros, só publicado, e bastante corrigido, em 1520,
constituindo uma crítica aos que se opunham aos estudos seculares, um
repto contra a ignorância e preguiça intelectual dos fechados na escolástica
das discussões e deduções, dos baseados em dados pouco exactos ou falsas
alegorizações ou, ainda, dos que não queriam subir degrau a degrau a
escada do aperfeiçoamento pela combinação da erudição e elegância
humanista com a devoção e a revelação, e não queriam aceitar o acordo
possível entre as letras profanas e as sagradas, entre a cultura pagã e a
cristã, que, pelo contrário, caracterizava a comunidade das letras ou
«respublica litterarum», que emergia imparável na cristandade.
Aí ousará questionar certas verdades: «Dizes-me que não devíamos ler
Virgílio porque está no inferno. Achas que muitos cristãos, cujas obras
lemos, não estão no inferno? Não nos compete discutir se os pagãos antes
de Cristo não foram condenados. Mas, se me autorizarem a raciocinar, ou
eles estão salvos, ou ninguém se salva». Ao seu lado, defendendo a causa
da união entre as belas-letras e as letras divinas, entre a piedade e a cultura
elegante, estão S. Agostinho, S. Jerónimo, S. Basílio e S. João Crisóstomo.
E escreve ainda uma Vida de S. Jerónimo, um exemplo para muitos
humanistas e pintores que o trabalharam, de quem transcrevera todas as
cartas num trabalho de copista de manuscritos, valorizando a separação ou
o retiro em relação ao mundo dos bárbaros, para que, na quietude, as fontes
da Sabedoria eterna manem e ressuscitem.
A sua intensa dedicação ao estudo, a qualidade do seu domínio do latim
e da sua inteligência e talvez o seu desassossego aspiracional, levam o
abade Wernar a sugerir ao bispo de Cambrai, Hendrik van Bergen, a
convidá-lo para seu secretário e, assim, Erasmus parte em meados de 1492,
com autorização do abade do seu mosteiro de Steyn, acompanhando-o
durante cerca de dois anos pelos Países Baixos (Holanda, Bélgica e
Flandres) recolhendo-se até no eremitério de Groenendael. Gorada a
hipótese do bispo se tornar cardeal, é autorizado em 1495 a aperfeiçoar os
estudos, ou a doutorar-se, na Universidade de Paris.
Erasmo inicia-se então na vida errante de peregrino independente do
conhecimento, partindo para Paris e inscrevendo-se como estudante pobre
XXVI
no colégio de Montaigu, do qual, anos mais tarde num dos Colóquios,
intitulado A refeição de peixe, retrata o fanatismo idealista e ascético que
o regia, e por onde ainda passarão Rabelais ou S. Inácio de Loiola.
Este colégio era então dirigido por Iohann Standonck que, tal como
Erasmo, aprendera numa escola dos Irmãos da Vida Comum, tendo-se,
após um percurso árduo, doutorado na Sorbonne, a famosa universidade
parisiense, onde chegou a ensinar. Animado de grande entusiasmo religioso
e ascetismo (mas por vezes roçando a humilhação exagerada), quis
ajudar a reforma dos costumes do clero e fez vir expressamente da então
grande abadia de Windesheim, tanto Jean Mombaer, autor do Rosetum
Exercitiorum Spiritualium, de 1501, um livro devocional importante e
pioneiro, como Cornelius Gerard, um amigo de Erasmo, criando-se um
grupo de reforma cristã no qual o jovem Erasmo também participou e com
cujos membros se foi correspondendo.
Não se sentia, porém, nada bem com a salubridade do alojamento, nem
com as condições gerais mortificantes e pouco favoráveis aos estudos das
letras humanas, nem com a parca (só se comia depois das 11 horas da
manhã) e má alimentação, à base de ovos já estragados e peixe, que
Erasmo, de saúde frágil, pouco apreciava…
Também as temíveis epidemias mortíferas repetiam-se, pelo que não se
deteve no Colégio muito tempo, voltando à Holanda para estar de novo
com o seu patrono e regressar ao mosteiro de Steyn. Decide então, apoiado
pelo bispo, hospedar-se numa casa particular em Paris, onde regressa em
Setembro de 1496, podendo agora mais facilmente escrever poesia, estudar
e, como estava sem dinheiro, receber alunos logo atraídos pela sua
inteligência, ironia e idealismo evangélico.