CELEBRANDO
A MÃE TERRA E A MAGIA DOS SEUS REINOS
Depois de se terem alimentado e passado pelo Templo onde em agradecimento se interiorizaram, Saykuma sentiu necessidade de expandir os horizontes. Tendo continuado pela estrada que o tinha conduzido até ali para prosseguir em busca do desconhecido. As pedras de um lado e do outro mostravam-se solenes, como que a guiá-lo ao passar. De cor avermelhada pareciam contar histórias de anos e anos de experiências transmitindo sabedoria, dignidade e ânimo que acumulavam nos veios internos. Que mais não eram, senão, verdadeiras colunas vertebrais.
Seguia prazenteiro assobiando, respirando profundamente o ar da manhã que já estava prestes a retirar-se.
Contemplava a vegetação rasteira, alguma um pouco agreste, em que, aqui e ali, uma árvore ou flor que parecia esquecida lhe acenava.
O coração radiante enternecia-se não tendo dado conta que começava a atravessar uma zona mais verde, onde ao longe se avistava uma cascata.
Entretido com os devaneios e alheado da realidade deu por ele a tropeçar, caindo numa situação bizarra que o deixava sentado de pernas flectidas para o ar. Atrapalhado sorriu para si mesmo, sacudindo um ou outro salpico de terra, parecendo- -lhe, entretanto, ouvir uma voz como se estivesse em perfeito delírio:
– Não vês onde colocas os pés ilustre cavalheiro? Deves prestar mais atenção …
Saykuma não via ninguém, duvidando que estivesse a ouvir qualquer voz!
– Eu sou o guardião deste lugar onde todos os que aqui entram devem ser capazes de me reconhecer, pois vêm com uma missão interna de bem-aventurança e temperança nos corações. Dado que este lugar é abundante tal como são as suas águas.
Mais uma vez Saykuma olhava, mas nada via prolongando o olhar pela linha do horizonte e arredores.
– Sim, transpuseste a porta da entrada sem pedir permissão e isso não é delicado.
– Como te posso reconhecer? Perguntou, cada vez mais intrigado, observando de novo em todas as direcções. Demorando o olhar em cada pormenor, até que finalmente e nem querendo acreditar viu uma deliciosa criatura um pouco maior que o seu dedo indicador, mas tão perfeita que encantava. Estava pousada na biqueira do seu sapato do pé esquerdo, onde os olhos se distinguiam redondos e grandes numa cabeça, que parecia ter um chapéu incorporado.
Custava-lhe admitir o que via e a criatura fixava nele um olhar com tamanha autoridade que o intimidava!
– Perdoa-me, tu pertences ao mundo das fadas? Eu nunca em toda a minha existência contactei esse universo, por isso, eu não te vi. Enquanto lhe estendia um dedo para selarem o pacto da paz.
– Só os puros de coração me podem ver e tu apesar de teres vivido uma história bela com a nossa orquestração, ainda tens laivos antigos dentro de ti que necessitam de ser domados e transmutados.
– Tu podes-me ajudar? Perguntou, enquanto se disponibilizava com intenção de aprender e glorificar todas as regras do seu habitat mágico e sagrado.
– A magia é um estado de ser de todo aquele que tem inocência como a criança. As minhas hostes vão-te instruir pois sabemos do teu caso e do trabalho que é suposto partilharmos em conjunto.
Dizendo isto desceu do sapato, colocando-se à sua frente num gesto de reverência a indicar-lhe o caminho. Saykuma ajoelhou com o coração a pulsar de alegria.
Estava a entrar num lugar habitado por fadas, duendes, ondinas, gnomos e outros que nem fazia ideia de existirem, mas que o coração agora desperto reconhecia. Seres que deambulavam de noite e de dia espalhando a doçura como gotas de mel que saciavam e tocavam a alma de todo o peregrino.
Continuou o seu percurso imbuindo-se do espírito da natureza, chamando os Devas para o instruírem e conduzirem aonde era suposto ele ir. Começando a sentir à medida que abria e expandia o coração sensações pelo corpo, simbiose com a Grande Mãe e um contentamento tão grande que as lágrimas lhe caíam pelo rosto como dois rios salgados.
Sentia-se completo. Por isso não se questionava. Sabia que nada sabia sobre o que se estava a passar. O que interessava era viver cada momento com a totalidade do seu Ser.
Respirava aspirando o ar retendo-o nas suas profundezas, para depois o soltar numa expiração lenta. Conseguindo, assim, controlar os impulsos que ainda precisava dominar.
A vegetação volvia cada vez mais verde e mais densa.
Receando cruzar de novo outro portal sem se aperceber ia reverenciando e cumprimentando os guardiões. Pedindo autorização para que o recebessem, o deixassem permanecer e até se possível o guiassem e iniciassem nos mistérios que ainda desconhecia.
As águas avistavam-se num branco espumoso rumorosas num caudal que parecia não ter fim. Perto das margens algumas rãs deitadas ao Sol pareciam observá-lo, sem demonstrarem receio da nova presença.
Saykuma gostava de as admirar. Os olhos vivos que pareciam dois radares. A pele verde viscosa. As patas de traz enormes quando as barbatanas se colocavam em movimento.
Alegremente sorriu-lhes. Até lhe parecendo que elas o entenderam, respondendo com um som que entoavam cada uma de sua vez numa sinfonia bem orquestrada.
Embalado pelo coro das rãs e pelo barulho da queda da água, em sintonia de coração com todos os seres que sentia presentes, mas não conseguia caracterizar, escolheu um lugar confortável sobre uma espécie de erva onde se deitou.
Estava de barriga para o ar contemplando o azul do céu. Onde aqui e ali se avistava uma nuvem cujos contornos o vento depressa transformava. Gostava de ler as mensagens nas nuvens. Por isso ficou atento a uma que já começava a desenhar uma silhueta.
Via umas asas e um ser que parecia ser feminino de cabelos compridos muito ondulados que lhe estendia um género de envelope. A sua grande beleza transmitia-lhe suavidade, mas o vento depressa a desfez, deixando Saykuma num enigma e confesse-se um pouco irritado.
Como o céu não lhe proporcionou outra oportunidade lembrou-se de aceder à sua sabedoria interna trazendo a imagem para o coração. Entregando-a ao seu Eu Superior a quem pediu iluminação. O mesmo rogando às fadas e seres que sabia estarem por ali.
Cerrou os olhos. Colocou a atenção no coração começando a rever toda a representação. Focalizando o envelope começou- -o mentalmente a abrir.
De repente a imagem ganhou cor, sendo predominantemente dum azul-marinho e rosa muito belos. O envelope dourado continha um cartão no interior cujas letras tentou decifrar «Bem-vindo ao reino das Fadas e dos Elementais. Eu sou uma Ondina e resido nas águas preservando a sua qualidade. Mantendo o nível de energia, o espaço circundante. Atraindo todos os peregrinos sedentos para as minhas fontes cujo objectivo maior é purificar. Só acreditam em mim os que são puros e só me vêm os que já me contactaram no seu interior. Eu sou tão frágil como a libelinha, mas vigorosa e amiga. Bem-vindo ao reino do encantamento».
Saykuma continuava de olhos fechados. Sentindo o peito a subir e a descer numa respiração lenta. Mais uma vez estava a ser confrontado com o desconhecido, mas neste caso um mundo enfeitiçante. Que apetecia tocar, agarrar, pese embora, só de pensar que aquele ser se desfazia se o tentasse, deixava-o permanecer imóvel imbuído de veemência. Já tinha contactado um gnomo, supunha ele, e agora uma Ondina.
Reparava que as mãos pareciam querer movimentar-se trazendo-as para o contacto com a Terra. Tinha a sensação de estarem molhadas, mas não deu importância continuando no seu estado interno de gozo em contacto com o coração.
– Será que haverá mais alguma mensagem? Pensou, enquanto desdobrava a carta na tela da mente para confirmar se tinha lido tudo até ao final. Reparava que havia um pouco mais de texto que não se lembrava de ter visto antes. «Nós não somos uma invenção, nem feiticeiros, nem almas do outro mundo, como às vezes os humanos supõem que sejamos. Nós somos seres vivos e temos o nosso reino, que dá pelo nome de Reino Elemental. Tal como existe o reino humano. Inter-agimos directamente com as realidades dos reinos mineral, vegetal e animal. Sabemos que não é fácil explicar, uma vez que é desconhecido para a maioria dos humanos que ainda vivem numa dependência mental e têm dificuldade em sentir. Criamos em sinergia com a Mãe Terra, pois somos também uma parte do Seu corpo e consciência onde tudo está interligado. Digamos que, é como um relógio, onde cada peça encaixa na outra. Quer seja grande quer seja muito pequena. Porque se ela não estiver lá o relógio não funciona. É preciso que o conjunto seja reconhecido, mas cada parte também. Cada um representa o seu papel, sendo este, uma peça chave no equilíbrio e resultado final.
Sabemos que somos Todo e somos parte, trabalhando para a harmonia, o nosso maior objectivo».
Parecia que algo mexia junto a Saykuma e como se dispersou o papel desapareceu. Sentia o contacto das mãos no solo dando por ele a acariciar a Mãe, que tudo nos dá e nós por vezes tão maltratamos. Nela podemos saciar a fome, a sede. Deslumbrar os olhos na Sua beleza. Usufruir da abundância.
Tendo vontade de abrir os olhos fixou o céu em busca de outras nuvens.
Começava a formar-se uma espécie de velho, mas muito pequeno que parecia mirá-lo. Em reverência falava-lhe:
– Bom dia Saykuma filho do mar.
– Quem és tu, perguntou surpreendido? – Sou o Ancião. Aquele que zela pela ordem e manutenção do Sistema. Uma espécie de autoridade que trabalha na unificação dos territórios. Na ligação das linhas axiatonais do planeta. Activando-as e vigiando para que se mantenham inter-conectadas.
O tempo e a experiência conferiram-me a sabedoria, que é fundamental para a coesão do Todo.
– Uma espécie de Saturno pensava Saykuma a sorrir.
– Sim, ponderas bem. Saturno o Mestre. Aquele a quem vocês chamam o chato, porque ele já aprendeu com os erros e não gosta de ver-vos a repeti-los.
Como o vento o levou, o Ancião desapareceu. Era mais pequeno e magrinho que um recém-nascido.
Saykuma continuando deitado deliciava-se com tudo o que via, ouvia e sentia. Tentava levantar-se, mas havia algo que o puxava para a Terra que afagava como uma criança, brincando com uma ou outra pedrinha.
Por fim fixando o céu pela última vez uma águia mostrava- -se imponente transmitindo liberdade, força, determinação. Sorriu para ela colocando a mão no coração para agradecer. Observando-a desfazer-se para lá dos confins da abóbada celeste.
Encalhado, mas não morto, levantou-se sobressaltado perante a mão que lhe subia pela perna acima:
– Saberás que estou descansando minha irmã. Que realmente me assustaste?
– Chamei-te, mas não me ouviste. Por isso, enviei-te uma águia pois tinha a certeza que a verias deslumbrante e majestosa nas suas asas abertas, retorquiu a Ondina. Nem todos podemos ser águias, ursos ou leões. A determinação pode ser encontrada num simples caracol que transporta a sua casa de um lado para o outro. Não deixando de ir seja aonde for.
Hoje quero-te falar sobre liberdade. Aquele sentimento interior de seres tu próprio. Ou seja, dares corpo à tua própria Essência que se traduz por Ser.
– Tu és livre Saykuma?
– Sim… De certo modo considero-me livre… respondeu, sentindo-se como se estivesse a viver outra vida e que esta sim, agora a estava a viver. Embora tudo tenha decorrido de uma forma tão rápida que mal conseguia recordar o tempo passado antes de ali chegar. Sentia-se livre, sim, e até lhe parecia que já só conhecia esse nobre sentimento. (continua…)