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O VOO DA AVE

18.00

Informação adicional

Peso450 g
ISBN

978-989-8147-60-8

Ano

2012

Edição

1

Idioma

Formato

145×210

Encadernação

Cartonada

N. Pág.

330

Colecção

REF: 634 Categorias: , ID do produto: 23463
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Ano de 565 d.c.. A Gallaecia está numa calma aparente desde que Teodomiro, o Rei Suevo, abraçou o Deus cristão; a presença de Martinho de Dume na sua corte foi a causa.
Para mim, Cabura, que pertenço a uma tribo da Montanha, e que sempre vivi no Castro com a minha gente, preservando a tradição, honrando a Natureza e os Deuses, é-me difícil entender os forasteiros e as suas estranhas formas de pensar.
Não tardará muito que nem as Montanhas ficarão isoladas do resto do território. Até ao momento em que cá virão. Porque virão. Não sei se devo temer ou não, o Homem é livre na sua relação com os Deuses mesmo que os esqueça.
Cada caminho que se toma tem um trajecto diferente do primeiro. Por uma acção vai o populus. O fardo que se leva é maior e maior é a decisão. Com a decisão escolhe-se o fim. Um dia o círculo fecha-se. O voo da ave assim o diz.

O início (na voz de Cabura )

Ano de 565 d.c.. A Gallaecia está numa calma aparente desde que Teodomiro, o Rei Suevo, abraçou o Deus cristão; a presença de Martinho de Dume na sua corte foi a causa. Histórias contam que a rainha implorou a Dume para que curasse o filho mais novo e este concordou com a condição que o Rei se convertesse. Teodomiro anuiu e Dume, com as relíquias sagradas de um tal Martinho, salvou o filho. Os murmúrios espalharam-se de boca em boca pelo território, a corte estava longe, as mensagens chegavam através dos vendedores ambulantes que vinham de Bracara e muitas delas com bastantes luas de atraso. Claro que a maior parte das histórias estavam cheia de pormenores bastantes duvidosos e largamente ampliados. Mas o populi da Gallaecia tinha acalmado.
Os Suevos dominam toda a região, excluindo uma parte da Lusitânia, numa relativa paz inédita. Contrariamente aos Romanos, não usam a escravatura mas submetem as tribos à sua servidão: sempre são homens livres embora estejam subjugados mas, do que produzem para estes guerreiros agora transformados em senhores de extensas terras, retiram uma percentagem para alimentarem as famílias.
Os guerreiros Suevos são diferentes dos lusitanos; parecem apreciar o que a natureza lhes dá mas são principalmente homens da guerra. Detêm as terras onde o nosso populi trabalha mas poucas vezes usufruem das suas casas; por outro lado, têm todo o prazer em festejar e desfrutar das colheitas. Quando não precisam de servir o seu Rei, arranjam sarilhos por todo o lado, conquistando mais terra para cultivo, não as defendendo posteriormente. Limitam-se a erguer uma paliçada em volta, parecendo que estão a demarcar território, em vez de erguer muralhas para a vedarem
Aparentemente não temem uma invasão, pelo menos das tribos; nós somos o populi conquistado, subjugado e servil. Em troca, concedem a sua protecção a quem os serve.
Os Suevos cingem-se às planícies férteis e produtivas onde a água jorra em abundância e o solo é rico. Têm bastante caça e não são alvo de emboscadas. Não apreciam as grandes civitas, ao contrário dos romanos, nem se entretêm com os banhos ou circo. Estas, que outrora tinham grande importância tanto a nível de estratégia como base para o escoamento de produtos, foram entregues a si próprias. Demonstram apreciar o isolamento sem sentirem a necessidade de governar as regiões com punho de ferro. Em comparação com os Romanos que vincaram fortemente a sua presença, efectuaram construções para que os soldados se instalassem, deixando a sua marca, este povo nem parece conquistador, não fosse a força da sua espada e os seus altos guerreiros de barbas e cabelos compridos. Bracara é a excepção, quem domina são os Frati.
Segundo os homens velhos, estamos numa sombra da época áurea.
O comércio quase desapareceu. Existe o essencial – a troca de sementes, alfaias e outros produtos de primeira necessidade. É difícil para os que não se subjugam e conservam as suas tradições, prosperar, como o caso do nosso Castro situado nas montanhas. De difícil acesso, os guerreiros não cobiçam os terrenos.
Certamente que muitas vezes existem batalhas entre nós, para além das restantes com proscritos, desertores do exército ou mercenários, mas deve-se ao facto da necessidade de estarem sempre em combate. Atacam a nossa fortaleza, principalmente pela noite, com o intuito de saquear, roubar as nossas colheitas e destruir a nossa povoação. Gentes sem escrúpulos, onde na primeira oportunidade violam as mulheres, ateiam fogo e provocam a destruição. Os nossos guerreiros necessitam de estarem sempre vigilantes e preparados para os combates. Atentos dia e noite, temos conseguido suster estes assaltos. Os nossos filhos são preparados para tornarem-se guerreiros e quando atingem a idade adulta tomam a vez dos mais velhos. Entregamo-nos à força de Trebaruna, Deusa guerreira, que nos conduz à vitória. Somos obrigados a estar sempre em forma para assegurar as defesas e unir-nos contra este invasor que dividiu o nosso populi. Por isso digo que a paz é relativa, apenas não existe o confronto directo entre os diversos invasores dos povos germânicos.
Os Frati vincam fortemente a sua presença e os Suevos dão total liberdade para as suas acções. Martinho de Dume, de garra firme, tenta organizar as terras pertencentes ao reino, dar consistência aos mosteiros espalhados, conseguido o que nunca outrora tinha sido efectuado. Cria regiões diferentes das definidas pelos Romanos, envolve os rústicos em volta das igrejas, para conseguir a conversão ao Cristianismo. Nós, os que nascemos, crescemos e morremos nesta terra, somos os rústicos a que se refere, e adoramos os Deuses Pagãos.
Os cristãos ignoram a nossa devoção, para além de escarnecerem dos nossos rituais, desconhecendo na totalidade a sua intenção. Não compreendem a relação dos ciclos da Natureza com a vontade dos Deuses e desprezam as nossas crenças. Para eles, somente existe um Deus único que todos têm de adorar, ter fé e devotar a vontade com os seus princípios. Desconhecem a força de Endovellico e Ataegina ou Trebaruna, que nos guiam para a nossa sobrevivência. Dume defende o exemplo da integridade, bondade e ascetismo.
Tento entender este Deus, criador de todas as coisas vivas, com as suas normas e imposições mas, para um povo que vive de acordo com a natureza e em harmonia com os ciclos da vida, é difícil de perceber a necessidade de privarmo-nos do que os Deuses oferecem.
Desde a chegada de Martinho de Dume à Gallaecia, discursos inflamados têm sido proferidos contra os nossos cultos. Os Frati, não contentes com a nossa subjugação, ainda proclamam que somos tentados por um dos seus deuses menores, o demónio. Ridicularizam Endovellico, deus do sol e encaminhador das almas, Ataegina na sua tripla faceta, chamando-os de malditos. Vêem a leitura dos augúrios e dos oráculos nos dias auspiciosos como sendo um atentado contra a vontade do seu Deus e desonram as nossas mulheres que tecem nos seus teares invocando protecção para o detentor do seu trabalho. Ignoram por completo a presença dos Lares que protegem as nossas casas, dos Geniis das montanhas e das ninfas das águas e fontes. Como poderão não sentir a sua presença que nos abrigam? Não sentirão o poder que nos rodeia?
Desconhecem a necessidade de invocação para que as nossas colheitas sejam prósperas e as festas alegres que damos em agradecimento ao que a terra nos dá.
Como não compreendem o voo da ave como orientação ao que há-de vir? E o derrame do vinho e oferendas?
O seu Deus é entre paredes, não observam o dia das Calendas para que a noite não se propague e a luz vença as trevas, ou a importância dos ciclos, a germinação das sementes e a colheita do vinho. Não são gente que sintam a natureza viva e as honras com que servem. Não são homens do campo e por isso não sentem a força de Ataegina, mãe Deusa, fecunda, protectora de todos os seres vivos.• Quanton mais observo os seus costumes, mais me intrigam. Quem proclama a humildade não deveria respeitar os conhecimentos que tanto desprezam?
Dume, agora instalado em Bracara, tem os homens da fé espalhados por todo o lado. Os guerreiros, nas suas terras, têm um monge para os guiar nessa fé que necessita de mensageiros. Depois existem, para além dos mosteiros mais antigos, outros que vivem em comunidade. Andam por todo lado a pregar sobre o amor e os bons costumes mas mantêm a nossa gente como seus escravos. Há ainda poucos que vivem sós. Dizem que são puros e que falam com o seu Deus. Na realidade não sei se assim é. Se o fizessem, porque não comunicariam aos restantes a sua sabedoria? De todas as vezes que leio o oráculo, que tenho uma visão, essa visão tem de ser partilhada. Assim manda Endovellico. Não passo de um canal entre os Deuses e o populus.
Para mim, Cabura, que pertenço a uma tribo da Montanha, e que sempre vivi no Castro com a minha gente, preservando a tradição, honrando a Natureza e os Deuses, é-me difícil entender os forasteiros e as suas estranhas formas de pensar. Como chefe dos Castros, chefe dos chefes menores, responsável por todos os que me rodeiam, vejo-me obrigado a saber todas as notícias ou a enviar homens para saber os perigos que possamos ter, para além de necessitar de compreender aqueles que contra nós manejam a espada. Não é possível uma vivência pacífica com os seguidores da nova fé por se recusarem a aceitarem outra forma de viver. O que observo é que o populi sempre tentou estar em harmonia, não se imiscuindo nos costumes dos forasteiros mas não prescindindo dos seus. Actualmente é impossível graças à necessidade que têm de impor a sua vontade.
Tento guiar-me consultando o oráculo onde os Deuses falam e transmitem o conhecimento que deverei ter. Nem sempre as águas onde vejo partes do futuro explicam tudo. O voo da ave traz-me sinais que não posso ignorar mas não mostra o coração dos homens.
Esse é difícil de ver.
As Montanhas onde vivemos são e serão sempre sagradas. Nelas vivem os Genii que nos protegem. As fontes de água com as suas Ninfas correm pelas suas encostas formando pequenos lagos nas clareiras; as grutas escondem divindades que nos guardam nas alturas de maior perigo. Aqui as estrelas estão mais próximas, a lua encontra-se a um esticar do braço e o sol aquece-nos. As Montanhas são protectoras. Até os Suevos sabem.
Cada vez mais é difícil a sobrevivência das nossas tribos. As constantes invasões de povos que vêm de terras longínquas acabam por nos obrigar a que nos abriguemos nos lugares mais remotos ou secundemos ao seu jugo. Longe vai a época em que os nossos uniram-se contra os romanos. Assim dizem as histórias que passam boca em boca. Fala-se também de um guerreiro que os combateu e foi traído. Não sei.
Apesar de termos modos de vida iguais, as tribos viram costas umas para as outras, excepto os Castros, como o nosso, que convivem em harmonia. Somente os que vivem nas montanhas compreendem essa necessidade, defendendo-se mutuamente. A vida é mais dura devido às condições agreste e à falta de terrenos mais férteis.
Por vezes escravos e servos fogem para os braços de Ataegina, percorrem os escondidos caminhos antigos, enfrentando lobos, ursos e a escuridão, até se sentirem a salvo numa das Montanhas. Todos nós sabemos disso. Os Castros existentes vão abrigando-os; outras vezes acabam por formar uma comunidade em antigas ruínas derrubados pelas constantes guerras, erguendo-as orgulhosamente.
Outros tantos, quando a fome grassa as terras baixas de temperaturas mais amenas mas com os campos destruídos ou conquistados, onde os frutos crescem mais facilmente, as colheitas podem ser abundantes, o gado facilmente engordado, recorrem às casas dos homens da fé por um punhado de pão de castanha e aderem a tudo o que lhes pedem. Quantos são os que não estão nessa situação? O medo da violência dos guerreiros Suevos que continuam a pilhar acaba por ser maior. A pouco e pouco vão perdendo a sua fé e ganhando costumes diferentes.
Quanto mais ouço falar sobre esse Dume, quanto mais vejo a reacção dos nossos populi, mais tenho medo do futuro. Este é demasiado ambicioso e convincente. Se o Deus dele quer transformar-nos no seu rebanho, tenho medo do sucesso.
A nossa gente é alegre, gosta de rir, de celebrações e festas, um bom combate ou uma valente caçada ao touro, uma história ao serão e muitas descrições de feitos que nunca foram realizados. Todos as levamos a sério mas, o que valem ao fim de uma caneca de cerveja? Somos ávidos pela vida, orgulhosos e amantes dos prazeres. Não guerreamos entre nós excepto se está em causa uma mulher ou a nossa masculinidade. Elas olham os homens com alguma displicência mas enfeitam-se para serem admiradas e cortejadas. Por nós, estaríamos sempre em época de paz mas parece que os Deuses não decidiram assim.
A montanha de caminhos difíceis e a nossa localização no topo desta dá-nos vantagem sobre o inimigo. Os nossos ferreiros garantem as armas, as mulheres tecem, os artesãos fornecem-nos as restantes necessidades e as colheitas têm nos garantido a sobrevivência. Não temos sido atingidos por grandes maleitas mas os nossos bebés e idosos continuam a perecer por altura do solstício de inverno, não sobrevivendo ao frio, apesar da arte curativa de alguns. Entregamo-los ao abraço de Endovellico sabendo que este encaminhará as suas almas para o Outro Mundo.
Com o perigo constante dos caminhos que nos ligam às civitas, temos tido dificuldade na troca de bens, para além do despovoamento destas. Recorremos a algum comércio com Castros não muito distantes mas, por vezes, as sementes e gado que necessitamos são escassos e obrigam-nos a ir mais longe tentar negociar.
Não tardará muito para as Montanhas ficarem isoladas do resto do território. Até ao momento em que cá virão. Porque virão. Não sei se devo temer ou não, o Homem é livre na sua relação com os Deuses mesmo que os esqueça. A sua presença não deixará de existir pelo afastamento e o abandono das honras devidas. Em cada gesto, cada vez que a mão se enche de terra fecunda ou mergulha nas águas, sempre que o sol e a lua continuam os ciclos iluminando o céu com a luz forte ou a ténue luz da noite, na morte, na vida e no recordar daqueles que estão no Outro Mundo, no suave crescimento de todas as plantas e no milagre do nascimento das crias, existe sempre a mão suprema daqueles que acompanham o nosso ritmo. Os olhos não nos mostram tudo mas no fechar das pálpebras ou na abertura para os sinais que nos rodeiam, eles estão lá, presença que nos dá a força no trabalho realizado e união que estreita a relação entre os que estão e os que nos deixaram para uma outra vida.
Reflicto neste problema. Os Deuses saberão melhor do que ninguém o que não consigo alcançar. Se esta é a sua vontade, terá de ser a minha também; mais tarde irei perceber. Deixarei passar quantas luas forem necessárias até que um sonho me seja enviado. Ou não.

(Teresa Durães nasceu em Lisboa e é licenciada em Engenharia Informática. Publicou o romance «Navia» em 2010 e «Recortes de um país moribundo» em 2011.
Participou na antologia de poesia de poetas contemporâneos «Entre o sono e o sonho – Vol. III – Antologia de Poesia»).

ÍNDICE

O início (na voz de Cabura )
Sermão aos Frati (na voz de Dume)
A chegada dos homens da fé (na voz de Sunua)
Andero chega à civita
Lucius chega ao Castro
A chegada ao Castro (na voz de Lucius)
A festa do sol (na voz de Sunua)
Lucius no Castro (na voz de Andero)
A confissão (na voz de Lucius)
Andero regressa da civita
O regresso da civita (na voz de Andero)
Lucius encontra-se com Dume
O noivado (na voz de Sunua)
A viagem de regresso (na voz de Lucius)
Oração de Cabura (Início de um novo ciclo)
Por altura do solstício do Inverno (na voz de Sunua)
A batalha (na voz de Andero)
Despojos (na voz de Cabura)
O ferimento de Camal (na voz de Sunua)
O regresso de Lucius (na voz de Andero)
O regresso ao Castro (na voz de Lucius)
A recuperação de Camal (na voz de Sunua)
Paixão (na voz de Sunua)
Deuses, morte e dor (na voz de Andero)
Angústia (na voz de Sunua)
Amor inconfessado (na voz de Andero)
Quando Ataegina me deu a mão (na voz de Sunua)
A morte de Cabura (na voz de Andero)
Lucius (na voz de Sunua)
O Conselho (na voz de Andero)
Oráculo (na voz de Sunua )
A cerimónia
O oráculo através de Sunua (na voz de Andero)
O fim (na voz de Sunua)
Antes do parto (na voz de Andero)
O parto de Sunua (na voz de Aleba)
A morte de Sunua (na voz de Terlis)
A morte de Sunua (na voz de Andero)
A anexação (na voz de Andero)
Longo o caminho (na voz de Aleba)
Enquanto se fez homem (na voz de Terlis)
Enquanto se fez homem (na voz de Andero)
Enquanto se fez homem (na voz de Toncii)
O Guerreiro (na voz de Rustrii)
A descoberta (na voz de Toncii)
A descoberta (na voz de Andero)
A expedição (na voz de Rustii)
A expedição (na voz de Terlis)
A expedição (na voz de Lucius)
O voo da ave (na voz de Toncii)
O voo da ave (na voz de Andero)
O voo da ave (na voz de Terlis)
Apontamentos
Obras principais consultadas