INTRODUÇÃO
É das florestas e contrafortes dos Himālayas que provavelmente brota este Cântico de exaltação do Um, da Unidade do Eu individual e do Eu Divino, do Espírito e da Divindade, do Ātman e de Brahman que nos chega hoje às mãos, transcendendo bem o espaço eo tempo. Escrito na forma de diálogo, à boa maneira dos Upaniṣadas, entre dois conhecedores ou mestres do Espírito Supremo, o sábio Aṣṭāvakra e o rei Janaka, figuras entre o histórico e o lendário, de contornos enriquecidos por histórias e lendas que se esfumam num tempo sempre tão mítico como é o da Índia, sempre tão aberta ao eterno.
De facto, com tantos séculos ou milénios de oralidade, é natural atribuir-se uma fabulosa antiguidade, a muitos dos ensinamentos ou mestres, pelo que a datação desta obra continuará apenas no domínio das suposições. Para uns, será provavelmente dos sécs. VI a III a.C., talvez um pouco depois da composição da Bhagavad Gītā, outro cântico (gītā) da Índia, e certamente o mais perfeito e famoso. Para outros, será do séc. VIII, ou mesmo dos XII a XIV, integrado num darśana, ou tradição espiritual ou metafísica, então bem desenvolvido.
Pouco importa contudo tal nevoeiro se o texto nos chega intacto, sem manipulações nem omissões nessa ampla, multifacetada e aberta Índia. Confirmam-no, nomeadamente na biblioteca Bodleian, em Oxford, as cópias manuscritas antigas com poucas variantes.
Respira ainda a frescura do alento inspirado em plena floresta ou nas margens majestosas do Ganges, num encontro de dois Jñānis, dois mestres da Idenntidade e Verdade do Ser, e abre-nos amplas vistas sobre o Oceano Infinito do Espírito, além de indicar os caminhos de aproximação e os modos de vivência mais directos e simples.
Desta obra brotam indicações e impulsões próprias ao despertar espiritual, e à compreensão iluminativa da Realidade, alcançável pela compenetração do ensinamento e a permanente atenção e discriminação. Para que isto aconteça, é valorizada a diminuição ou dissolução do ego e da agitação mental, bem como do apego aos objectos dos sentidos, para além do cultivar da equinimidade e da contemplação da omnipresença espiritual, a essência do Ser em si, Ātman.
Para os tempos modernos, que passam em desenfreada correria de sobrevivência e de informação, nada mais indicado do que um ensinamento como este, pleno de espaços de paragem e silêncio, vestidos do nu do desprendimento e abertos ao sopro da Unidade, para destilarem em nós o néctar da imortalidade, sobretudo ao serem lidas com o coração receptivo.
Tal é o escopo desta magnífica obra que surge talhada muito uniformemente em 298 versos (ślokas), perfeitos na sua dimensão numérica de palavras e sons do sãoscrito, que etimologicamente significa a língua perfeita por excelência, língua eterna como é considerada nos Vedas e pela Tradição Hindu.
Estamos diante de uma daquelas obras-primas da literatura religiosa que é também um manual de acesso à libertação, ao Mokṣa, e que é considerada unanimemente um clássico do principal darśana indiano, o Advaita Vedānta.
Os darśana (de visão) podem ser traduzidos como modos de ver, tradições, doutrinas metafísicas, disciplinas de realização e são tanto ensinamentos dos modos de pensamento, conhecimento e visão da Divindade, do Homem e da constituição do Universo como caminhos de práticas e modos de viver, pois a sua intenção é a de tentarem expor a Verdade e de ajudarem as pessoas a alcançá-la e a vivê-la, não se limitando em geral, tal como sucede no Ocidente, a meras especulações mentais, antes indicando caminhos e maneiras de vida, práticas transformadoras e consciencializações libertadoras, sobretudo na sua tradição mais conhecida e influente, o Vedānta, em geral associado ao Yoga.
Há seis darśanas (Saddarśana) principais ou ortodoxos, que aceitam a autoridade inspirada dos Vedas e o objectivo da libertação, e que foram aprofundados e coordenados ao longo dos séculos, sendo no fundo seis perspectivas tradicionais do Conhecimento e da Realização. Além do Vedānta, também chamado Uttara-Mīmānsā (a segunda investigação, porque trata da parte final dos Veda, que são os Upaniṣadas), temos o Pūrva-Mīmānsā (a investigação inicial, porque esclarece a parte ritualistica e inicial dos Vedas), e que teve a sua condensação nos Sūtras de Jaimini; o Vaiśeshika (de viśeṣa- diferença), coordenado por Kanada, atomista e cosmológico, próximo da religião Jaina; o Nyāya, teísta, que aprofunda a ciência da lógica e as condições do conhecimento válido; o Sāṃkhya (de enumeração, cálculo, raciocínio), concentrado nos Sāṃkhya Sūtras de Kapila, dualista (Puruṣa e Prakṛtī, Espírito e Natureza), pluralista (inumeráveis espíritos individualizados), realista, enumerador dos princípios constitutivos do Universo e do homem, nomeadamente os três guṇas; e finalmente o Yoga, coordenado nos Yoga Sūtras de Patañjali, como a via real de oito membros ou partes culminantes no samādhi, a unificação consciencial.
A palavra Vedānta significa “o fim do Veda”, sobretudo porque assenta nos últimos livros dos Vedas, os Upaniṣadas. De facto, baseia-se nesses livros milenários e os mais sagrados da Índia, os Vedas, recebidos pelos Ṛṣis em revelações e fixados por volta de 2000 a 1500 a. C., por um semi-mítico Vyāsa, em três colecções (samhītā), o Ṛg, o Sāma, o Yajur (a que se juntou um quarto, o Atharva, já não tanto de hinos e rituais mas de orações, encantamentos e filosofia). Assenta também nos textos posteriores: os Brāhmanas que interpretam os hinos dos Vedas, os tratados das florestas Āranyakas, já destinados às práticas religiosas e, finalmente, os Upaniṣadas, textos de teor filosófico e de espiritualidade prática, nomeadamente de Yoga (que significa tanto União, espiritual e divina, como os meios para se chegar à União e que são basicamente o auto-conhecimento e a libertação em relação à ignorância), escritos numa linguagem ora poética ora dialogante, ora visionária ora didáctica, num conjunto valioso de cerca de duzentos e cinquenta, com cento e oito principais e treze mais importantes e antigos, onze dos quais comentados por Śaṅkara, ou pelo seus seguidores, com o seu nome…
Para além dos ensinamentos dos Vedas, Upaniṣadas e também da Bhagavad Gītā, o Vedānta assenta nas reflexões, intuições e obras posteriores, já não reveladas e que vão esclarecer, aprofundar e ordenar as intuições e ensinamentos díspares, pelas épocas e a variedade de autores, dos Upaniṣadas. Estas obras posteriores começam com o Brahmā Sūtra, de Bādarāyaṇa (440-380 a. C.), que é de certo modo o primeiro coordenador conhecido da tradição do Advaita (presente em afirmações e intuições dos Vedas, e desenvolvida nos Upaniṣadas), seguindo-se os comentários (Karikas) de Gaudapāda e as obras do principal expositor, Śaṅkara, este já do séc. VIII d. C.
O Vedānta, já como tradição espiritual e visão metafísica estabelecida, está pois dividido em duas tendências principais, o Advaita, que informa a Aṣṭāvakra Gītā, e desenvolvido pelos autores acima nomeados, e o Dvaita, dualista, aprofundado e desenvolvido por Rāmānuja, Madhva, Nimbārka, Vallabha, Caitanya, e os seus seguidores.
Esta tradição Dvaita (dual) Vedānta tem várias escolas, tal a do Visiṣṭādvaita de Rāmānuja que reconhece a diferença (bheda) entre o Espírito individual e o Divino mas também a “não-diferença” entre eles (abheda), sendo que todas admitem o Espírito individual, a realidade do mundo, a Revelação Divina na literatura sagrada e identificam Brahman, o Absoluto como a Divindade, nomeada como Vāsudeva, a designação mais antiga, Viṣṇu-Nārāyaṇa (a mais frequente) e finalmente por Kṛṣṇa.
Já o Advaita Vedānta, que é o Conhecimento último não-dual, a sua principal característica é a afirmação de que há (ou é) apenas Brahman, Espírito Absoluto, Eu Supremo, Consciência Pura e que o mundo é meramente uma ilusão, uma sobreposição (adhyāropana) sobre a Realidade Una divina (Brahman), sendo por isso falsas as identificações que nos prendem às ilusões dos sentidos, do mundo, do corpo, da personalidade, ou mesmo de um Eu individual distinto ou diferente do Eu ou Espírito Divino.
O objectivo da vida é então mokṣa, a libertação em relação aos laços da ignorância, a emancipação completa em relação aos pares de opostos, o dissipar da ilusão da pluralidade e da separatividade, através da Realização da Unicidade, que mais do que resultado do fazer é antes, a partir do desprendimento e da renúncia ao ego, o reconhecer do que sempre foi, é e será, o Ser, o Um.
Esta doutrina da não-dualidade tão natural na Índia, de Cashemira a Madrasta, dos Hindus aos Sikhs, vamos encontrar em alguns iluminados e mestres das mais diversas regiões e tempos e lembremos apenas Lau Tse e os taoístas; Plotino e alguns neo-platónicos e pitagóricos; Jesus, o Cristo, sobretudo no Evangelho de Tomé, o pseudo-Dionísio Areopagita, certas proposições dos religiosos Eckhart, S. Boaventura, Nicolau de Cusa, Angelus Silesius, ou os arroubos de alguns místicos; no Renascimento, as especulações de alguns dos chamados averroístas, bem como as realizações dos grandes mestres do Humanismo Marsilio Ficino e Pico della Mirandola; no Islão, Averróis, as vivências de Al-Hallaj, Suhrawardī e Rūmī, bem como as doutrinas da identificação do eu humano ao Eu divino (ittihād) e da Unidade do Ser (wahdat al-wujūd) desenvolvidas por Ibn Arabī e Jīlī.
Certamente que muitos mais místicos e iniciados estiveram nas fronteiras da dualidade para a Unidade, tal como exclama o sufi e mártir Al – Hallaj:
«És Tu, sou eu? Isso faria dois.
Longe de Vós, longe de Vós o pensamento de afirmar dois.
Um ser, o Teu, exprime-se sempre no fundo do meu não ser.
Pretender somar o meu todo ao Todo seria uma dupla ilusão:
Onde está a Tua essência, em relação a mim, para que eu possa vê-la,
Já que a minha essência ultrapassou visivelmente o Onde?
E onde está a Tua face?
A minha visão devo procurá-la no íntimo do meu coração
Ou na pupila do meu olho?
Entre Ti e mim, há um «eu sou» que me atormenta.
Ah! Tira pelo teu «Eu sou» o meu «eu sou» do meio de nós dois».
Akbar Al-Hallaj. 50.
Quanto ao Cântico da Consciência Suprema, ele respira por todos os poros e linhas a não dualidade e está pleno de entusiasmo pelo descobrimento do Espírito, do Eu Absoluto, da Unidade Divina, exprimindo um ensinamento no qual se nota a influência da Bhagavad Gītā, e de Viveka Cūdāmaṇi de Śaṅkara, havendo mesmo algumas frases e versos idênticos nas três obras. Foi portanto escrito depois do aprofundamento realizado por Gaudapāda, com os seus comentários a um dos mais importantes Upaniṣadas, os Māṇḍukya Karikas, redigidos cerca de 650 d. C., onde surgem os mesmos exemplos de sobreposições e reflexões ilusórias usados na Aṣṭāvakra Gītā, que reconhecemos contudo serem dos mais próprios para exprimir algumas das ilusões da vida. E pelo que dissemos acima é portanto posterior às obras já do séc. VIII d. C. do āchārya (professor ou preceptor) Śaṅkara, que terá tido como mestre um discípulo de Gaudapāda, e que foi o grande organizador e defensor do Advaita Vedānta, tal como o encontramos hoje, constituindo mesmo a doutrina de milhões de crentes hindus que seguem e aceitam os sucessores de Śaṅkarāchārya, saṃnyāsins ou renunciantes bem considerados e influentes na sociedade.
A hipótese mais plausível será seguramente a de ter sido já redigida nos séculos XII a XIV e quando foram escritas obras como o Vedāntasara de Sadānanda. Aṣṭāvakra Gītā significa o Canto de Aṣṭāvakra (“Oito vezes torcido”), personagem que nos surge na epopeia do Mahābharāta, III, caps. 132-134, numa curiosa história justificativa deste nome: filho do sacerdote e sábio Kahor, ainda no ventre da mãe atreveu-se a criticar o seu pai dizendo-lhe que embora já tivesse aprendido com as recitações diárias todo o Veda de cor, reparara que ele cometia erros. Kahor, incomodado, imediatamente descarregou uma imprecação da qual resultou ter nascido disforme. Empobrecido o pai, partiu para a corte de Videha onde tendo sido derrotado em debate religioso ficou aprisonado. O filho aplicou-se de tal modo à sabedoria que a certa altura partiu para Videha e veio a vencer em debate teológico, na corte do rei Janaka, o grande sábio da época Bandin, daí resultando a libertação do seu pai, o reconhecimento grato e, após um banho purificador no rio sagrado, a consequente cura. É sob as bênçãos deste sábio e de Janaka, que também aparece noutros textos doutras épocas, que este forte ensinamento advaitico ou sem dualidade será escrito.
Esta tradução tem como raízes as ligações pelo lado da minha mãe (Noronha) com a Índia, em particular Goa e Mahen, o estudo e a prática do Yoga e da espiritualidade desde muito novo, a breve aprendizagem de sãoscrito com a Dra. Margarida Corrêa de Lacerda, a minha iniciação na tradição Advaita Vedānta, em Rishikesh, com Swāmi Kaivalyānanda, e mais tarde com outros mestres, nas estadias na Índia de cerca de três anos, algumas traduções do sãoscrito realizadas em Calcutá com Satchidananda Dhar
É uma tradução do sânscrito já transliterado, ou seja, em que a escritura devanagárica já está passada para caracteres ocidentais conforme se pronuncia, segundo as regras dos orientalistas. Para a realizar consultei outras traduções bem como várias obras da tradição Advaita Vedānta, além da gramática de Whitney no exemplar que pertenceu ao nosso primeiro sãoscritólogo Guilherme Vasconcellos Abreu, e por ele bem anotado…
A transliteração do texto, resultou de uma escolha da versão que me pareceu mais correcta, havendo de facto poucas diferenças, por exemplo, entre as transliterações. Incluímos tanto a transliteração completa do texto sãoscrito como, já na tradução, algumas palavras, com conceitos mais importantes, entre parênteses, (em geral no tema, mas sem uma uniformidade completa nas palavras compostas ali separadas), tudo para que se possa tanto ouvir e sentir a voz original como confrontar sentidos e direcções.
A tradução certamente diverge em vários versos das outras traduções o que se explica não só pela riqueza dos níveis como pelas especificidades anímicas dos tradutores e comentadores. No meu caso, o conhecimento experiencial da realidade espiritual auxiliou-me a propor em certos versos delicadas traduções que julgo que se aproximarão talvez mais do sentido primacial, iniciático e libertador deste ensinamento.
Algumas palavras básicas da sabedoria indiana são tão ricas de possibilidades de sentidos que justificam a variação de tradução que oferecemos. Algumas delas são mais tratadas nas notas, comentários e glossário, mas confessamos que sem grande uniformidade (pois são aproximações ora experienciais, ora lógicas, ora intuitivas) não esgotando todas as implicações e potencialidades. É o caso de palavras como cit, consciência, inteligência, mente; buddhi, discernimento, inteligência ou intelecto; Ātman, Espírito, Eu, Ser em si; bandhā, nó, encadeamento, prisão, alienação; samādhi, absorção, extase, unificação interior; rasa, sabor, prazer, amor; saṃsāra, ciclo transmigratório, fluxo fenomenal, devir em si, confluência de planos e seres; bhava, emoção, sentimento, estado de ânimo, amor; sukha, agradável, feliz, satisfeito, à vontade.
A Concisão deste clássico não-dual, típica nesta forma concentrada de versículos, indica que os versos são para serem meditados e em certos casos mesmo aprendidos de cor e ouvidos.
A obra dispensaria muitas notas e comentários, pois a sua perfeição e claridade são ora relâmpagos despertantes na nossa consciência ora, pela nossa assimilação continuada, janelas abertas ao sopro da realidade espiritual. Contudo, pela riqueza de sentidos acima aludidos e para o leitor menos familiarizado com a Tradição Hindu, redigimos no fim da obra um glossário, para além de aqui e acolá termos dado notas de rodapé e alguns comentários mais substanciais, estes reunidos no fim de cada capítulo.
Certamente que ao traduzir uma obra destas é preciso muita atenção, sabedoria, amor e intuição para se descobrir a versão que terá mais qualidades e possibilitará efeitos mais iluminadores, no fundo a mais exacta, o que fui tentando, ajudado pela vivência do Yoga e da espiritualidade de mais de trinta anos e com algumas estadias na Índia, de que aliás tenho inédito o relato de duas delas e donde extraí parte do glossário, depois bastante ampliado.
Realizada para a colecção “Luz do Oriente”, das Publicações Maitreya, a pedido da Maria Ferreira da Silva, a quem devemos de certo modo a finalização da tradução comentada desta pérola da tradição espiritual não-dual, esta versão certamente poderá melhorar nos versos mais complexos, na uniformização dos termos transliterados isolados e sobretudo nos comentários explicativos e na comparatividade, até ecuménica. Estamos pois receptivos a correcções, comentários e acrescentos, quem sabe para uma segunda edição…
Numa explicação muito breve e rudimentar dos sinais usados na transliteração diremos que os traços dão quantidade sonora aberta, tal o ā, ī, ū que são portanto vogais de sons alongados; que Ṛṣis, se diz r(e)shis, pois o Ṛ é considerado uma vogal, e o ś e o ṣ se pronunciam sh., no último sinal (ponto em baixo) mais acentuado. O ḥ, denominado visarga, é um espírito áspero, assinala uma sonorização aspirada, frequentemente no fim de uma palavra sibilante. O ponto que vai debaixo ou em cima tal em ṃ, denomina-se anusuara, e representa uma nasalização de qualquer qualidade, ou seja, palatal, dental, etc. Simplificámos e unifirmizámos o plural das palavras sãoscritas, como se fosse em português, respeitando o género delas.
Por fim, os agradecimentos cordiais, por algumas sugestões, à professora de sãoscrito Margarida Corrêa de Lacerda, à directora da editora Elisa Flora pelo seu entusiasmo e, pelo estímulo e ajudas, a Maria Ferreira da Silva, que se tem dedicado há muito à prática e ensino da meditação e da espiritualidade da Índia.
Que a obra possa inspirar o Spiritus em quem a ler,
Dissolver as vibrações mais egoístas e destrutivas,
E desvendar mais a Luz espiritual e a Consciência Divina.
Que esta obra possa inspirar o “Spiritus” em quem a ler,
Dissolver as vibrações egoístas e destrutivas,
E desvendar a Luz Espiritual e a
Consciência Divina.
Janaka disse:
1. Ensinai-me, oh mestre, como se consegue o Conhecimento, como se origina a Libertação, como se realiza o desprendimento?
Astavakra respondeu-lhe:
2. Se quiseres libertar-te, amigo, evita como veneno os objectos dos sentidos e ama como néctar a tolerância, a rectidão, a compaixão, o contentamento e a verdade.
3. Não és terra, nem água, nem fogo, nem ar, nem a eterialidade espacial.Para (conseguires) a libertação conhece a testemunha deles, o Eu-Espírito, Consciência pura.
4. Tornar-te-ás imediatamente livre de laços, em paz e feliz como distinto do corpo e permanecerás em quietude na Consciência divina.
5. Tu não és da casta dos Brâmanes, nem de qualquer outra, nem de nenhum dos estágios etários da vida, nem estás ao alcance da percepção sensorial. Tu és independente, sem forma, observador do universo. Sê virtuoso.
6. O dever e o vício, a felicidade e a dor são mentais e não teus, oh eaprisionamento está só em veres-te a ti-próprio não como o observador mas de modo diferente.
Capítulo XX.
Janaka disse:
Kva bhutāni kva deho vā kvendriyāṇi kva vā manaḥ
Kva śūnyaṃ kva ca nairāśyaṃ matsvarūpe nirañjane.
1. Onde estão os elementos, onde está o corpo físico, onde estão os órgãos dos sentidos, onde está a mente, onde está o vazio, onde está a ausência de expectativa (nairāśya)(1) na minha própria essência pura (nirañjana)?
(1) Nairāśya: traduzida por desespero por alguns autores, devido à experiência do vazio. Todos os versos deste capítulo final vão pôr em causa todos os meios, noções e identificações, e a interrogação “Onde”, é o mesmo que dizer: “O que é isso?”, ou que não é.Quanto à parte final dos ślokas, ela permite várias hipóteses de tradução, em especial o “para mim” ou o “em mim”, ou “sendo eu” e explorámos tal com diferentes propostas. Sendo o último capítulo sente-se aqui realmente mais intensamente como ele é o Cântico Supremo de que vive na revelação libertadora ou salvadora, no Espírito, na Unidade.
*
Kva śāstraṃ kvātmavijñānaṃ kva vā nirvisayaṃ manaḥ
Kva tṛptiḥ kva viṭṛṣṇatvaṃ gatadvandvasya me sadā.
2. Onde estão as escrituras sagradas, onde está o conhecimento do ser em si (Ātma-vijñāna) ou onde está a mente desprendida dos objectos dos sentidos? Onde está o contentamento, onde está a ausência de desejos para mim, deixados para trás os pares de opostos?
*
Kva vidyā kva ca vā´ vidyā kvāhaṃ kvedaṃ mama kva vā
Kva bandhaḥ kva ca vā mokṣaḥ svarūpasya kva rūpitā.
3. Onde está o Conhecimento e onde está a ignorância? Onde está o eu, onde está o isto (idam)(2), onde está o meu? Ou onde está a alienação (bandha)(3) e onde está a libertação? E onde está o formado (rūpitā)(4) da minha natureza essencial?
(2) Idam: isto. Refere-se sobretudo ao dṛṣta, ao visto, ao que nos rodeia, não só as coisas, os relacionamentos ou as experiências mas também as manifestações dos mundos.
(3) Bandha: encadeamento, prisão, sujeição, servidão. Hoje, em muitas das sociedades modernas, manipulação e alienação serão dos mais adequados vocábulos a empregar para os laços e nós limitadores.
(4) Rūpitā: formado, representado, exibido, imaginado. De rupa: forma, corpo, mas também essência e atributo. A pergunta realça também a incapacidade de descrevermos ou definirmos o Espírito, que na sua subtileza e não dualidade escapa às tentativas de representação.
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Kva prārabdhāni karmāṇi jīvanmuktirapi kva vā
Kva tadvidehakaivalyaṃ nirviśeṣasya sarvadā.
4. Onde estão as frutificações das acções passadas (prārabdhā- karma)(5), onde está a libertação em vida do espírito individual (jīvanmukti) ou a libertação na morte (videha kaivalyaṃ), estando eu com todas as relações diferenciadoras extintas (nirviśeṣa)? (6). (*).
(5) Prārabdhā-karma: as reacções que estamos a recolher das nossas acções passadas, e que continuam a correr mesmo para a pessoa já realizada ou liberta.
(6) Nirviśeṣasya: sem particularismos, indiferenciado, sem atributos específicos.
*
Kva kartā kva ca vā bhoktā niṣkriyaṃ sphuraṇaṃ kva vā
Kvāparokṣaṃphalaṃ vā kva niḥsvabhāvasya me sadā.
5. Onde está o que age ou o que desfruta, onde está a cessação da actividade (niṣkriya) ou o ressurgimento (sphuraṇa), onde está o conhecimento directo (aparokṣa)(7) e o conhecimento diferido (phala), estando eu sempre de estados de ânimo subjectivos (niḥsvabhāvasya)?(8). (*).
(7) Aparokṣa jñāna: conhecimento directo ou sem fases; isto é, conhecimento intuitivo ou directo, estando aqui oposto ao conhecimento discursivo, diferido, com fases (phala) prévias ou intermediárias de operações mentais e lógicas que reagem às impressões sensoriais.
(8) Niḥsvabhāvasya: impessoal, sem ou livre da natureza própria. Pode-se traduzir ainda por: sem atributos naturais ou próprios, ou ainda por livre do próprio devir, ou livre da minha própria natureza subjectiva.
*
Kva lokaḥ kva mumukṣurvā kva yogī jñānavān kva vā
Kva baddhaḥ kva ca vā muktaḥ svasvarupe´hamadvaye.
6. Onde está o mundo ou onde está o aspirante à libertação, onde está o yogī ou o conhecedor espiritual, onde está o aprisionado ou onde está o liberto para mim que sou na própria essência sem dualidade (sva-svarupe-aham-advaye) (9).
(9) Svarupa: a sua forma, a natureza própria, a essência em si. Reconhecida como não-dual.
*
Kva sṛṣtiḥ kva ca saṃhāraḥ kva sādhyaṃ kva ca sādhanam
Kva sādhakaḥ kva siddhirvā svasvarūpe´hamadvaye.
7. Onde está o começo (sṛṣtiḥ)(10) e onde está o fim (saṃhāra)(11), onde está o objectivo a ser alcançado e onde estão os meios (sādhaṇa)(12), onde está o praticante espiritual (sādhaka) ou onde está o já perfeito (siddhi), em mim que sou na essência não-dual?
(10) Sṛṣti: criação, começo do novo ciclo (kalpa) da manifestação cósmica. Por exemplo, do mundo.
(11) Saṃhāra: contracção, acumulação, fimda manifestação e entrada no pralaya.
(12) Sādhaṇa: em termos de Yoga e de Vedānta são as práticas espirituais que servem de meios para se alcançar a estabilização na identidade real, a auto-realização, a libertação. É de certo modo o Caminho Espiritual, em geral com uma purificação, aprendizagem e iniciação.
*
Kva pramātā pramāṇaṃ vā kva prameyaṃ kva ca pramā
Kva kiñcit kva na kiñcidva sarvadā vimalasya me.
8. Onde estão o conhecedor e o método de conhecimento válido(pramā)(14)? Ou onde estão o objecto de conhecimento e o conhecimento? Onde está algo ou onde está a ausência de tal, sendo eu inteiramente puro (sarvadā vimalasya)?(15)
(14) Pramā: conhecimento verdadeiro ou válido, oposto à hipótese, dúvida e erro. O ser que já é a Unidade do Espírito, o que precisa ainda de conhecer?
(15) Sarvadā: completamente, inteiramente. Vimala: imaculado, limpo, brilhante, claro, transparente.
*
Kva vikṣepaḥ kva caikāgryaṃ kva nirbodhaḥ kva mūḍhatā
Kva harṣaḥ kva viṣādo vā sarvadā niṣkriyasya me.
9. Onde está a distracção e onde está a concentração, onde está a dissolução do conhecimento (nirbodha)(16) e a ignorância entorpecedora, onde estão a alegria ou a tristeza, estando eu completamente no estado de não-acção?
(16) Nirbodha: significa aqui o não-conhecimento ou a extinção do conhecimento no sentido do conhecido e até ao nível de Buddhi, a cognição pura e universal. É um estado ou estação no processo de libertação, que será depois ultrapassado pela abrangência total da Verdade e Unidade, do ser iluminado. Chinmayānanda prefere, para manter uma dialéctica de opostos, a expressão “conhecimento certo”.
*
Kva caiṣa vyavahāro vā kva ca sā paramārthatā
Kva sukhaṃ kva ca vā duḥkhaṃ nirvimarṣasya me sadā.
10. Onde está a vida comum e onde está o estado último? Onde está a felicidade e onde está o sofrimento, estando eu sempre acima da mente e na Consciência divina? (17)
*
Kva māyā kva ca saṃsāraḥ kva prītirviratiḥ kva vā
Kva jīvaḥ kva ca tadbrahma sarvadā vimalasya me.
11. Onde está a ilusão e onde está o mundo fenomenal cíclico, onde está o apego ou onde está a renúncia das intenções mundanas, onde está o Espírito individual e onde está esse Brahma, sendo eu a Plenitude Pura em si? (*)
*
Kva pravṛttirnivṛttirvā kva muktiḥ kva ca bandhanam
Kūṭasthanirvibhāgasya svasthasya mama sarvadā.
12. Onde está o caminho da acção (pravṛtti) ou o caminho da quietude (nirvṛtti)? Onde está a libertação ou o aprisionamento, para mim, sempre imutável (kūṭashaḥ), indivisível (nirvibhāga) e autónomo. (*)
*
Kvopadeśaḥ kva vā śāstraṃ kva śisyaḥ kva ca vā guruḥ
Kva cāsti puruṣārtho vā nirupādheḥ Śivasya me
13.Onde está o ensinamento (upadeśa)(18) ou onde está a escritura sagrada? E onde está o discípulo ou onde está o guru? E onde estão os propósitos da vida, para mim que sou Felicidade suprema (Śivasya)(19) absoluta (nirupādhe)?(20).
(17) Nirvimarsaya: sem a energia da manifestação em pensamentos.
(18) Upadeśa: instrução, transmissão de práticas ou conhecimentos secretos, iniciação.
(19) Śivasya: ser de natureza de Felicidade ou de Bem supremo. Śiva: este Deus do panteão hindu, na trindade (trimurtī) Brahma, Viṣṇu e Śiva, incarna e simboliza os poderes de destruição e também libertação. Como adjectivo significa Feliz, Auspicioso, Bom e portanto há quem veja Nele não tanto um aspecto da Divindade mas as supremas qualidades, nomeadamente a essência beatífica do Espírito.
(20) Nirupādhe: sem atributos, sem limitações, sem qualificações, absoluta.
*
Kva cāsti kva ca vā nāsti kvāsti caikaṃ kva ca dvayam
Bahunātra kimuktena kiñcinnottiṣṭhate mama.
14. Em verdade, onde está o que é ou onde está o que não é? Onde está a Unidade e onde está a Dualidade? O que é preciso dizer mais? Nada se ergue (uttiṣṭhate)(22) de mim…
(21) Uttiṣṭhate: originar, emanar, nascer, resultar, brotar, erguer, excitar, começar, sair.
Comentários:
Verso 4: Das nossas acções actuais resulta karma, ou seja, reacção. Mas também do passado estamos a colher reacções, resultados. E se admitirmos uma vida anterior, quer na Terra, quer nos mundos subtis, daí também pode estar a vir o prārabdhā-karma. A pessoa iluminada, liberta e descondicionada terá ainda assim que ora queimar ora atravessar esse prārabdhā-karma, certamente com equanimidade. As meditações, as compreensões fortes, as transmutações interiores, a consciencialização e vivência da Verdade mitigam, queimam ou dissolvem o karma passado, tanto mais que já não há identificação egóica. Portanto, é como se deixasse de haver um centro que atrai e reage aos saṃskāras ou impregnações do passado, o que impede o prārabdhā, que já está em vias de frutificar, ou o que está em mero gérmen, de afectar um ego já dissolvido ou harmonizado… Em termos mais modestos de realização, a equanimidade perante o determinismo do que nos acontece corporal e psiquicamente será uma trave mestra da vivência no caminho libertador.
Neste verso está também a distinção entre a libertação em vida e em morte. Esta, seja a que se realiza nesse momento seja a posterior, pois sendo a Libertação o destino final dos seres, mesmo já sem corpo físico é possível às almas tal realização libertadora. À questão se com mais dificuldade ou menos, que quando estavam incarnadas na Terra, a maior parte dos mestres responde que é um grande privilégio ou oportunidade nascer-se num corpo humano capaz de nos prover dos meios de libertação, pelo que se deve trabalhar já pelo conhecimento libertador e a vida harmoniosa, pois quando despidos do corpo físico e das resistências terrestres mais lenta e dificilmente tal se realizará.
Verso 5: A pessoa iluminada ou liberta em vida é aquela que transcendeu mesmo a sua própria natureza, a sua subjectividade e é já Ātman, o Espírito, é também a Consciência divina, Brahman pura e infinita, penetrando e transcendendo tudo. Portanto, não necessita de obter mais conhecimentos limitados, quer através das operações mentais, quer o funcionamenteo dos órgãos do corpo espiritual e que lhe abrem instantaneamente a visão ou a compreensão directa. Está já na Unidade pelna da essência da Sabedoria, a santa Sophia dos místicos do Cristianismo Ortodoxo.
Verso 11: Embora a maior parte dos tradutores vejam neste Brahma o mesmo que Brahman, prefiro a partir da caracterização de Brahma como Deus primordial e Deus pessoal, pensar que o autor do Cântico da Consci~encia Suprema, de modo não dual, ou “advaiticamente”, depois de desvalorizar o Jīva individual, faz o mesmo em relação ao Deus pessoal Brahma, que de facto pode ser renunciado em prol, ou na unidade, de Brahman, o Espírito impessoal absoluto, Este não sendo questionado. Mas também faz sentido, como os outros tradutores entendem, que se queira ultrapassar o conceito ou conceptualização limitada que fazemos de Brahman absoluto, ou que se queira dissolver a Sua objectividade exterior, porquanto somos Ele é, não-dualmente.
Verso 12: Pravṛttiḥ e nivṛttiḥ são os dois clássicos caminhos (mārgas), um que leva à acção e envolvimento no mundo, ou mesmo o caminho da sensualidade, e o outro o que nos retrai do mundo, nos acalma os pensamentos e nos religa ao Espírito. Esta aparente oposição de dois caminhos – o da acção e o da renúncia ou abstinência – que é harmonizada sabiamente nos quatro estágios ou āśramas da vida indiana, é aqui ultrapassada, pois a não ausência de ego e a respiração e vivência permanente da Unidade e da Verdade estilhaçam essas categorias exteriores, meras identificações ao mundo fenomenal e dualista, agora já transcendido no Ātman um com Brahman.
Verso 13: Śiva é o conhecido Deus do panteão hindu e na trindade (trimurtī) Brahma, criação, Viṣṇu, preservação, Śiva incarna e simboliza os poderes de transformação, destruição e também libertação (sendo os outros o de criação e o de preservação). Como adjectivo significa Feliz, Auspicioso, Bom e portanto há quem veja nele não tanto um Deus, ou um aspecto da Divindade, ou mesmo um ser mítico mas sim as supremas qualidades espirituais ou divinas, nomeadamente a essência do Ser, podendo pois traduzir-se assim o verso que comentamos: a natureza do meu ser é Felicidade, auto-satisfação, Amor universal.
Neste sentido fluiem os famosos mantras dos shivaítas: Om namo Śivaya, Eu saúdo Śiva, Eu saúdo o princípio ou natureza de Bem em mim, e finalmente o Śivo ham, “Eu sou Śiva”, “Eu sou a Felicidade, o Bem em si mesmo”, tão repetido e cantado, nomeadamente na inolvidável noite da Śivaratra, celebrada anualmente em toda a Índia. Neste versículo aponta-se provavelmente para os dois níveis, o que revela da parte do autor da obra uma ligação à tradição shivaísta, quer por ser uma obra destruidora da ignorância e libertadora do Espírito, quer por ser o auspicioso ensinamento revelador da essência beatífica e feliz do Epírito.
Verso 14: Este último verso realça que a existência e a não-existência, ou mesmo a Unidade e a Dualidade, desaparecem naquele que alcançou a Realização suprema, pela qual tudo é e nada é.
A parte final traduzida, com que limitações, por «nada se ergue de mim» mostra-nos a quietude do estado de Libertação última, conhecido como Kevala, a absoluta simplicidade. Do Ser realizado já nada se origina e, acima mesmo da harmonia cósmica nas suas existências e não-existências, só o Serque é também Não-Ser, Absoluto e Total.
Contribuindo para esta Realização Suprema, tão necessária nem que seja como horizonte ou paradasa último, na actualidade frenética e de tão grande manipulação, alienação e violação da dignidade humana e divina do Ser, que tanto dificulta o seu auto-reconhecimento libertador, tivemos nós a ousadia de trazer para a língua e a alma portuguesa este ensinamento, tão transcendente quanto imanente, transmitido há tantos séculos por Aṣṭāvakra, ou por outro mestre em seu nome, mas nos interpelar e despertar, e que na realidade é perenemente harmonizador, iluminador e libertador.
OM.