O Mestre Omraam Mikhaël Aïvanhov (1900-1986), filósofo e pedagogo de origem búlgara, foi para França em 1937. Embora a sua obra aborde os múltiplos aspectos da ciência iniciática, ele precisa: «Cada um deve trabalhar para o seu próprio desenvolvimento, na condição de não o fazer unicamente para si próprio, mas para o bem da colectividade. Nesse momento, a colectividade torna-se uma fraternidade. Uma fraternidade é uma colectividade onde reina uma verdadeira coesão, porque, ao trabalhar para si mesmo, cada indivíduo trabalha também, conscientemente, para o bem de todos.»
«Há dois mil anos, a vinda de Jesus instaurava uma ordem de coisas em que, pela primeira vez na história dos homens, eram postos em primeiro lugar os valores do amor, da bondade, do perdão, da paciência, da doçura, da humildade, do sacrifício. E apesar de, até aqui, a palavra de Jesus não ter sido bem compreendida nem bem aplicada, bastou que se fizesse luz em certos seres para ela se transmitir de século em século. O amor ao próximo ensinado por Jesus, e que decorre desta verdade de que os seres humanos são filhos e filhas de um mesmo Pai, permitiu que a ideia de Fraternidade abrisse um caminho para si própria».
Omraam Mikhaël Aïvanhov
XI
O SACRIFÍCIO DE JESUS NA CRUZ:
OS PODERES DO SANGUE
Jesus morto na cruz… Foi transportando com eles essa imagem do crucifixo que os cristãos se puseram a converter a terra inteira. Desde há dois mil anos, eles não param de repetir: «Jesus morreu por nós…
Jesus derramou o seu sangue pelos nossos pecados… Ao sacrificar na cruz a sua vida, Jesus salvou-nos…
O filho de Deus deu o seu sangue para salvação do mundo…» E ao repetirem estas frases eles consideram-se imensamente superiores aos crentes de outras religiões e, sobretudo, aos não crentes. Já pensastes bem nisto? O próprio filho de Deus derramou o seu sangue por eles, expiou por eles o pecado original.
Os seus amigos e até os seus pais talvez não dessem dois cêntimos por eles, mas o filho de Deus deu o seu sangue. Realmente, é caso para se sentir orgulho!
Como é que no século XX ainda é possível manter tais crenças?
Infelizmente, basta ver o estado da cristandade para se constatar que os cristãos não estão mais salvos do que os crentes de outras religiões nem do que muitos não crentes. Cometem as mesmas desonestidades, os mesmos crimes, porque é a mesma natureza humana egoísta, gananciosa, vingativa, que neles habita. Sim, um ser humano não muda milagrosamente de natureza por ter sido batizado. «É verdade, dirão alguns, os cristãos também são pobres pecadores.
Mas, se acreditarem sinceramente que Jesus, filho de Deus, morreu pela sua salvação, isso basta;
porque é a fé que salva e, quando eles chegarem ao outro mundo, serão reconhecidos como verdadeiros filhos de Deus.» Pois bem, desenganai-vos! Se eles não se tiverem já manifestado como filhos de Deus durante a vida na terra, não se tornarão mais filhos de Deus depois da morte.
Não faz sentido repetir que Jesus nos salvou. Os cristãos recitam: «Cordeiro de Deus, que tirais os
pecados do mundo»… Mas é uma tolice. Jesus pagou com a vida o facto de ser um precursor, pagou com a vida a audácia de querer trazer uma luz apesar de isso perturbar as autoridades religiosas e políticas do seu tempo, mas não veio para tomar para si as consequências dos erros dos humanos. Se estes cometem erros, são responsáveis e devem pagar por esses erros. Imaginar que alguém exterior a eles possa salvá-los das consequências dos seus atos é não ter compreendido nada da vida espiritual, nem sequer da vida psíquica. Pode-se dar-lhes todos os meios, todos
os métodos, para eles se salvarem a si mesmos, mas não se pode salvá-los. Quando se vê certos cristãos, mesmo daqueles que se apresentam como mais fervorosos, é evidente que Jesus não os salvou: em que estado de miséria espiritual eles se encontram!
Pelo facto de Jesus ter sido crucificado há dois mil anos, todas as gerações vindouras de cristãos
estariam automaticamente salvas?… Mas será que as pessoas sabem, ao menos, o que é “a salvação”? Na realidade, Jesus fez mais do que assumir as consequências de todos os pecados dos homens (o que é completamente impossível); ele abriu-lhes um caminho para eles conseguirem salvar-se a si mesmos pelos seus próprios esforços e eles poderão seguir esse caminho para sempre.
Cada um dos grandes filhos de Deus que vem à terra traz aos seres humanos novas verdades, novos métodos, para os salvar, mas cabe a eles compreendê-los e utilizá-los, cabe-lhes trabalhar para a sua própria libertação. Direis: «Mas está a diminuir o valor do sacrifício de Jesus!» De modo algum! A grandeza do sacrifício de Jesus não diminui se eu vos disser que só sereis salvos pelo vosso trabalho. Deus só quer uma coisa: o aperfeiçoamento da criatura humana. E para alguém se aperfeiçoar tem de fazer esforços. Podem abrir-nos o caminho, podem dizer-nos como caminhar, mas ninguém pode caminhar por nós, somos nós que temos de avançar. E o sacrifício de Jesus foi também o preço que ele teve de pagar para abrir esse caminho. Mas haverá muitos cristãos que estejam preparados para compreender isto? E será que alguém lhes explicou, ao menos uma vez, por que é que Jesus tinha de derramar o seu sangue na cruz?
Na época em que Jesus veio, o caminho que leva a Deus estava tão obstruído por presenças tenebrosas que só os seres que possuíssem uma inteligência, uma vontade e uma audácia excecionais tinham a possibilidade de avançar. A multidão, o povo, vegetava, pois era propositadamente mantido nos graus inferiores da consciência. A religião estava nas mãos
de uma elite e os que não pertenciam a essa elite eram deixados na ignorância. Eram distraídos com
superstições e histórias do arco-da-velha, e mesmo que essas práticas e mitos tivessem, na realidade, um sentido profundo, este nunca lhes era revelado.
Era necessário, pois, tornar o caminho mais acessível a todos os seres humanos, e foi o que Jesus
fez. Só pode compreender isso quem possui o verdadeiro saber iniciático, mas, ainda assim, eu tentarei tornar mais clara para vós esta questão começando por dar-vos um exemplo. Existem regiões na terra onde nunca se poderia ter chegado se não se tivessem construído estradas, caminhos-de-ferro, etc. Mas para isso foi necessário, antes, secar pântanos infestados com todo o tipo de animalejos, cavar túneis na montanha ou abrir passagem através de uma vegetação cerrada. Uma vez terminados esses trabalhos, o caminho ficava finalmente praticável para todos os que queriam percorrê-lo.
Na época em que Jesus veio, o caminho da evolução estava obstruído por entidades monstruosas, por egrégoras que se alimentavam do sangue das vítimas oferecidas aos deuses. Antes de Jesus, todas as religiões praticavam sacrifícios sangrentos; e os espíritos do mundo astral, a que também se chama larvas, elementais, que se alimentavam das emanações produzidas pelo sangue das vítimas, multiplicavam-se e reforçavam-se continuamente, formando em torno dos seres humanos uma atmosfera tenebrosa, malsã. Foi, pois, através dessas regiões pantanosas do plano astral que Jesus veio abrir um caminho para que todos os seres humanos, mesmo os mais desprovidos de meios, os mais desprezados, possam ir interiormente ao encontro do seu Pai Celeste. Mas, tal como para fazer uma estrada no plano físico, primeiro era preciso desimpedir, limpar, purificar; e não era assim tão fácil desembaraçar-se dessas entidades que obstruíam o caminho. Por isso, em vez do sangue das vítimas, de que elas se alimentavam, foi preciso que Jesus desse o seu. Sim, eis um grande mistério: o poder do sangue. Quando se fala do sangue que Jesus verteu por nós, é preciso entender que se trata desse fluido tão puro que é uma condensação da vida divina.
Está escrito nos Evangelhos que, no Jardim de Gethsémani, Jesus começou a sentir a angústia da
morte ao ponto em que «o seu suor se tornou como gotas de sangue que caíam na terra». Evidentemente, o sangue pode ser considerado tanto em sentido literal como em sentido figurado, pois, antes de ser esse líquido vermelho que circula no corpo do ser humano, o sangue é uma quintessência subtil portadora de vida na qual se exprimem todas as suas qualidades e virtudes. E embora, aparentemente, o sangue de Jesus não fosse diferente do de qualquer outro ser humano, na realidade cada gota desse sangue era semelhante a uma gota de luz.
Jesus tinha-se purificado e identificado tanto com o seu Pai Celeste que o seu sangue se tornara uma condensação da vida divina, da essência do próprio Deus. Ao caírem no chão, as substâncias celestes de que esse sangue estava impregnado modificaram qualquer coisa na própria matéria da terra, fazendo aparecer forças e virtudes que ela ainda não possuía. E quando as entidades do mundo astral se lançaram para se alimentar dele, esse sangue produziu nelas o mesmo efeito que um licor demasiado forte que elas não conseguiram suportar: ficaram como que
embriagadas; portanto, enfraqueceram, ficaram anestesiadas, e libertaram a passagem. Agora, a via está livre para todos os seres humanos.
Foi este o sacrifício de Jesus. Não basta dizer, pois, que, como ele derramou o seu sangue, nós estamos salvos. Isso seria demasiado fácil! Ao verter o seu sangue, Jesus apenas abriu um caminho para que possamos, pelos nossos esforços, salvar-nos a nós mesmos, e cabe-nos a nós, pois, percorrer esse caminho, estudando e aplicando o seu ensinamento.
O sacrifício de Jesus foi o ponto de partida de uma nova conceção de Deus e do homem. Jesus pagou para que um caminho se abrisse. É sempre necessário pagar! Mesmo para uma estrada, vós sabeis isso, é preciso pagar, e não apenas com dinheiro. Desde há séculos, quantas pessoas no mundo pagaram com a vida a construção de estradas, de túneis, de pontes, de caminhos-de-ferro! Então, por maioria de razão era preciso pagar para abrir no mundo psíquico um caminho até Deus. E foi por ter traçado esse caminho que Jesus pôde identificar-se com o Cristo e dizer: «Eu sou o caminho», ou ainda: «Ninguém pode chegar ao Pai se não for através de mim». Interrogai Jesus, se
puderdes, e ele responder-vos-á: «O meu sacrifício não é o que vós pensais. De que serve pagar uma vez na História pelos erros dos homens? Eles recomeçarão a pecar.»
Quando se paga pelos erros de alguém sem se esclarecer essa pessoa, ela nem sequer compreende aquilo que foi feito por ela e cometerá de novo os mesmos erros. Alguém se colocou em maus lençóis…
Vós tirais a pessoa dessa situação, está muito bem, mas há fortes probabilidades de, na primeira ocasião, ela voltar a cair. Como não aprendeu nada, não compreendeu nada, nem sequer ficou reconhecida, esqueceu o que fizestes por ela; na vez seguinte, voltará a pedir-vos ajuda e, se não lha derdes, ficará furiosa.
Então, como poderá ela progredir? É tempo de os cristãos começarem a compreender corretamente esse sacrifício de Jesus com que não param de se deleitar desde há séculos. Vós direis: «Mas “deleitar-se” como? O que está a dizer é uma falta de respeito!» Ah, e pensais que é uma demonstração de respeito ter enchido a terra de representações do suplício de Jesus? Pensais que Jesus fica feliz ao ver, por todo o lado, representações dele pregado numa cruz? Os cristãos levaram a cruz aos quatro cantos do mundo ameaçando povos inocentes: «Se não acreditardes que Jesus vos salvou ao morrer na cruz, matar-vos-emos.» Será isso o que Jesus queria?
Ainda agora, todos os curas e pastores continuam a repetir: «Jesus foi crucificado… Jesus deu o
seu sangue por nós.» Mas já se sabe isso, para quê repeti-lo? Adormece-se os cristãos com estas palavras.
É claro que querem mostrar-lhes a dimensão extraordinária do sacrifício de Jesus, mas isso não dá
grandes resultados. Por que não o apresentam mais vezes triunfante, em paz e na luz, a fim de levarem os seres humanos a tornarem-se como ele? Ao insistir tanto no suplício de Jesus, obscurece-se qualquer coisa na consciência dos cristãos. Há corações ternos, é claro, que são tocados, vertem algumas lágrimas. Mas como pode alguém sentir-se exaltado quando tem continuamente diante dos olhos a visão de um ser martirizado, a sangrar e coroado de espinhos?
Não se tem qualquer desejo de seguir o seu exemplo. Para poder mobilizar os humanos, é preciso
apresentar-lhes a beleza, a grandeza. Pode-se falar da crucificação, mas dando-lhe também uma interpretação mais vasta. Em Cristo na cruz, um Iniciado vê a Alma do mundo oferecendo-se às quatro direções do espaço. Mas será essa dimensão sublime, gloriosa, que se apresenta aos cristãos?
Jesus sacrificou-se para dar a luz aos seres humanos, para desimpedir uma via que os conduzirá até
ao mundo divino. E tudo isso é bem mais importante do que ter tomado para si as consequências de todos os seus pecados. Jesus abriu o caminho da salvação dando um ensinamento e, graças a essa luz, serão os próprios homens a libertar-se dos seus pecados. Foi por isso que ele disse não só: «Eu sou o caminho», mas também: «Eu sou a luz do mundo». Jesus deu-nos essa luz para nos mostrar a direção e cabe-nos a nós caminhar pelos nossos pés. Mas os cristãos querem que seja o próprio Jesus a levá-los até ao Céu e continuam a cometer os mesmos erros, os mesmos
crimes, contentando-se em repetir: «Jesus salvou-nos.» Pois bem, não é assim, Jesus não é o senhor dos preguiçosos.
Mas compreendei-me bem, eu não vim para demolir o que a Igreja ensina, vim para ajustar as
coisas, para as afinar, a fim de mostrar aos cristãos qual é, verdadeiramente, essa via aberta por Jesus. Cabe a cada um salvar-se pela sua própria vida de pureza, de sabedoria e de amor.
Poucas pessoas são capazes de se aperceber da grandeza do sacrifício de Jesus. Verter o seu sangue: nada é mais precioso do que o sangue, por tudo o que ele representa no plano físico, concreto, mas também no plano espiritual. Foi por isso que surgiram muitos relatos acerca da taça onde, segundo a tradição,
José de Arimateia terá recolhido o sangue de Jesus.
Formou-se em torno dessa taça toda a lenda do Graal: esta tem como origem a necessidade que os humanos tiveram de celebrar, de perpetuar na memória dos séculos, os mistérios do sangue do Cristo. Trata-se de coisas muito santas, muito sagradas, e todo o meu ser estremece quando tenho de expô-las perante vós.
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Notas
1. Cf. «Vous êtes des dieux», Parte I, cap. 3: «Le retour à la
maison du Père».
2. Cf. «Cherchez le Royaume de Dieu et sa Justice», Parte
VI, cap. 4 : «La croix».