PREFÁCIO À 2.ª Edição
Não poderia reeditar o “Tratado de Meditação” sem uma breve nota para sublinhar a importância espiritual desta obra, a qual com o decorrer dos anos se tornou para mim mais evidente. Os Yoga Sūtras de Patañjali, que se incluem na literatura filosófica e clássica da Índia, representam por si só, um guia para a demanda espiritual que contém, na sua profundidade, os requisitos fundamentais e imprescindíveis para o caminhar seguro, independente e consciente. Sem dúvida, esta obra aprofunda e sintetiza valores espirituais possíveis de realizar através de uma disciplina com base na Meditação, temática hoje em dia explorada por aqueles que sinceramente buscam o equilíbrio e a paz de espírito.
Na presente edição, houve um aperfeiçoamento em todo o seu contexto e, embora se encontre diferente na configuração, o conteúdo essencial permanece; esperando continuar a merecer leitura atenta, no entanto, peço, compreensão para algumas falhas que ainda possam subsistir. Os Sūtras estão agora mais destacados e separados dos comentários, permitindo assim uma leitura mais directa e, também, a inserção na grafia original do sânscrito.
Para Patañjali, o Caminho para a iluminação abarca três pontos fundamentais:
1.º – O Conhecimento, Jñāna, que é um caminho de busca (investigação) para obter a Libertação.
2.º – A Libertação, que é inseparável do Conhecimento.
3.º – A Realização humana espiritual, que é uma via pessoal (reflectiva existencial), filosófica e mística.
Encontramos, assim, reunidos três requisitos para a realização pessoal: a prática da Meditação, que leva ao autoconhecimento (introspecção), o estudo e a reverência religiosa-mística, que é o Amor à Verdade, ao Absoluto. Nenhum destes passos seria, em si, completo sem os restantes; eles são suportes que ajudam gradualmente ao enriquecimento interno para atingir o objectivo: a União Divina. Sem dúvida que para tal é necessário o Conhecimento, que liberta de dogmas e de conceitos
estabelecidos, pois só pela via directa da indagação se realiza uma sabedoria própria, contudo, num contexto universal.
O objectivo do caminho da libertação deve ser sempre encontrado pessoalmente (livre de conceitos), realizado de forma interior, directa e espontaneamente, rompendo barreiras conceptuais.
A realização pessoal implica transformação, a metamorfose consciente, enquanto uma doutrina é necessariamente limitadora, já que é baseada em conceitos, em classificações, em dogmas estáveis e insuperáveis. O Conhecimento é toda a filosofia que acompanha a transformação e envolve todo o tipo fenomenológico interno, imprescindível no caminhar consciente, onde a fé e a razão são inseparáveis e redentoras. Nesta base, a filosofia, enquanto tal, representa o amor à verdade e
ao saber pela indagação e liberdade pessoal, através do raciocínio, da razão. A fé é o suporte da indagação para chegar ao objectivo que o filósofo intui.
Desta forma, o método de Patañjali, para além de ser um guia, pois logo que se começa a empreender a prática da Meditação, a própria Alma de cada Ser o conduz espontaneamente,
é também uma referência para o que já se realizou e para o que ainda possa persistir como obstáculo no subconsciente.
Assim, na Índia há um exemplo notável de complementaridade, onde a Filosofia ou Religião engloba a prática viva e criativa da Meditação.
Infelizmente, a maior parte das obras comentadas dos Yoga Sūtras por ocidentais ficam pelas interpretações superficiais e incompletas, pois ignoram a prática da Meditação, meio pelo
qual se obtém conscientemente a Realização e a Libertação, as quais fazem parte de todos os métodos ou sistemas filosóficos da Índia. Não dão valor ao lado mais profundo da prática,
que é a Meditação – Yoga, e não os rituais, os movimentos (āsanas) e as respirações (prāṇayāma). É fundamental que se compreenda que, mesmo o método de Patañjali só resulta, se de facto, for empreendida a prática da Meditação.
Na realidade, para a Índia clássica, toda a Filosofia é uma filosofia de libertação, onde se conjugam vários factores sobre os quais o praticante deve estar consciente, sendo os mais importantes:
a determinação, o conhecimento, a devoção e a fé.
Nos Yoga Sūtras, a fé é um complemento de base para a indagação e para a prática espiritual. Porém, no Ocidente, se a fé é o suporte fundamental das doutrinas religiosas e filosóficas, elas também estão assentes em conceitos e dogmas que criam barreiras à descoberta desses mistérios, que se têm como aceites e não questionáveis.
Assim, a Filosofia, enquanto tal, e englobando tanto o conhecimento como a fé, liberta não só das cadeias da ignorância, como também do medo, da acção e da prisão das nossas construções limitativas mentais. A verdadeira finalidade ou o supremo objectivo de todas estas formas de salvação, que passa pelo conhecimento de si mesmo, é o Conhecimento de Deus. Ele é o Conhecimento, é o conhecimento por identificação, que se torna o conhecido e consiste na compreensão directa daquilo que anteriormente era externo e estranho.
O conhecido passa a ser parte do Conhecimento ou do conhecedor.
O Conhecimento passou para a interiorização do Ser, para expandir o Ser. Naturalmente, para se chegar a este Conhecimento, implica haver outros conhecimentos, outras ciências
auxiliares e sobretudo, disciplina espiritual: purificação de coração, concentração, meditação, silêncio, interiorização, recolhimento, eliminação de desejos. Deste modo, o Conhecimento
com a realização espiritual, constitui uma conquista gradual no caminho de busca permanente para obter a graça libertadora: a Consciência divina.
Ser consciente é um estado do Ser com dimensões da realidade que se vão descobrindo ao chegar a tal estado. Não é um estado de consciência psíquica ou de emoção, subjectiva, mas é um estado sereno, aquietado, fruto de realização interior, de identificação e conhecimento do Absoluto. O Conhecimento nesta base é iluminação. Esta Consciência não é apenas um estado de consciência, ela é de Ser, é um estado iluminativo, de claridade mental, mas não só: ela ultrapassa o conhecimento de si ou a consciência de si; é um saber para além do conhecimento, da materialidade, é Consciência pura, a qual já não é nada ao nível da identificação humana, nem sequer de si mesmo.
É a super Consciência inacessível à consciência directa, é um campo numa dimensão da Realidade, a pura, sem ilusões.
Já não são estados subjectivos, são modos de Ser, dimensões da realidade integrada na Realidade Absoluta. Obviamente, a Filosofia expressa uma linguagem, mas a sua nobreza depende da claridade mental de quem a usa, de quem a formula. Por exemplo, o sânscrito, suporte linguístico
dos Yoga Sūtras, é o mais alto exemplo de uma língua precisa, objectiva e concreta, onde todas as palavras contêm um significado profundo e directo. Cada palavra sânscrita é um tratado
filosófico, é em si uma autoridade, um alimento inteligente para a mente.
Nos Yoga Sūtras, cada palavra é, por si só, um símbolo profundo que sintonizada com cada passo da realização interna do Ser, se torna inter-activa: age sobre a Alma e vai directa à mente e ao coração. As palavras têm o condão de destruir barreiras ou obstáculos emocionais, dando espaço à mente para abarcar uma energia mais pura e renovadora do pensamento, para a realização espiritual. Isto, aliado a uma prática contínua de Meditação, permite encontrar minuciosamente, a cada momento, o seu próprio ponto de evolução ou a superação desses obstáculos, como um ganho irreversível no caminho de aperfeiçoamento, que será de Libertação.
Todas as Filosofias da Índia e, neste caso, dos Yoga Sūtras, acabam por ser um fenómeno linguístico; expressam a Verdade da linguagem, em que cada palavra é uma meditação, mas ao
mesmo tempo, quase uma sentença, tão clara e directa à mente, que por vezes se torna difícil de ser assimilada por aqueles que ainda estão longe de revelações demasiado profundas e reais.
Cada palavra tem a força para abrir portas à realidade da vida.
As palavras não são meros instrumentos mentais, mas são os próprios instrumentos em si, são o pensamento em vez do Ser pensante. Cada palavra é um mantra.
Concluímos que o aperfeiçoamento do homem nunca acaba: o homem é uma obra inacabada. A iluminação não é um fim, mas o princípio de algo que transcende o humano. Se alguém se diz iluminado, está a ser limitado e a levantar barreiras à sua própria Libertação. O Ser liberto não tem limites, não tem metas, vive por si só a plenitude do Absoluto, porque o Absoluto tem muitos graus de integração. Um grau que representa mais uma integração na Divindade é também mais uma porta que se abre para o Infinito.
Outra obra posteriormente publicada, o “Guia de Meditação” (2004), representa uma continuidade deste “Tratado de Meditação”, abrangendo explicações mais detalhadas, pelo que ambas se completam.
PRÓLOGO
A ideia de trabalhar com os Yoga-Sūtras de Patañjali surgiu quando, ao lê-los, comecei espontaneamente a comentá-los. Eles foram sendo escritos durante um período de quatro a cinco meses de deambulações pelas tão variadas regiões indianas e melhor local que o da sua origem, não poderia encontrar.
Quando escrevia sobre o tema do Samādhi, passei por experiências interiores de reconhecimento dos vários graus de Samādhi, os quais, embora já os conhecesse ou tivesse realizado, não considerava importante definir e identificar. Assim, quando me dirigia de Madrasta para Tiruvannamalai, onde está localizado o āśram de Rāmana Maharṣi, um dos últimos grandes sábios da Índia, tal expansão de consciência aconteceu dentro do próprio táxi em que viajava.
Neste percurso, tínhamos intenção de parar para visitar um famoso Templo. Encontrávamo-nos na data de uma grande festividade religiosa, pelo que muitos peregrinos, em grande devoção, caminhavam estrada fora, descalços, a maior parte vestidos de encarnado, e debaixo de um tórrido sol.
Quando já estávamos perto do Templo, entrei em Samādhi, vertendo lágrimas de felicidade, numa expansão mística do coração, deixando-me em tal estado de beatitude e quietude mental que me impediu de qualquer movimento em relação à visita programada. Ali mesmo, dentro do táxi, comparei a intensidade do Samādhi e a sua localização específica no coração. Mais tarde, no Jardim Botânico de Madrasta, debaixo de uma belíssima árvore, houve outra experiência de Samādhi: o
que vem da Inteligência Pura, e em que já não há mente para descrever o estado de Não-Existência. Também outros locais onde escrevia este livro foram certamente motivo de inspiração,
tais as belas e grandiosas bibliotecas como a Teosófica em Adyar, a Budista em Boddh-Gayā, e a do Instituto Cultural Rāmakrisna, em Calcutá.
Esta obra sobre os Yoga-Sūtras, um texto clássico tão comentado ao longo dos séculos, estaria acima da minha competência trabalhá-lo especificamente sem um estudo aturado.
Usei-os, então, como base de apoio para este “Tratado de Meditação”, que me facilitou ter princípio, meio e fim. Também pela espontaneidade com que foram surgindo as compreensões,
vi-me obrigada a reunir os textos que ia escrevendo, juntando-lhes certas reflexões que fui fazendo sobre os Sūtras em alguns lugares da Índia e também no Tibete.
Era-me “sugerido” que voltasse ao Tibete, embora essa não fosse a minha vontade. Sete anos antes, havia viajado numa carrinha atravessando vastas regiões, desde o Nepal até Lhasa, e que resultou em experiências maravilhosas, mas fisicamente desgastante. Foi nessa viagem que tive a oportunidade de tomar contacto com o povo tibetano nas aldeias pobres do interior, de percorrer extensas e belas regiões planálticas ou de subir montanha adentro rumo aos seus picos nevados, onde alcançámos os cinco mil metros. Devido à grande fadiga e desgaste que implica esta modalidade de viajar, pois em certos locais nem sequer havia estrada e o carro tinha de rolar sobre
pedras e água, resolvemos desta vez, viajar em “linha recta”, de avião, desde Kathmandu até Lhasa. Sobrevoámos, então, os Himālayas, na sua espectacular brancura e silencioso mistério, que toca e deslumbra, poupando assim certas energias corporais e psíquicas. E embora, mais uma vez, não soubesse para o que ia, nem porquê, não foram necessários muitos dias para compreender os motivos e começar a escrever sobre a actual e a antiga vida no Tibete e, a fazer comparações sobre o que se passou neste espaço de sete anos entre as minhas viagens, bem como saber as razões do Tibete estar ocupado pelos chineses.
De facto, há anos atrás o ambiente era mais religioso, viam-se muitos tibetanos pelas ruas com os seus rosários e havia como que uma magia de esperança sulcada em cada rosto, pois aguardavam a todo o momento a presença salvadora do Dalai-Lama. Os mosteiros estavam cheios de peregrinos rezando fervorosa e devocionalmente, convictos do poder da prece em os libertar da situação injusta e desoladora em que se encontravam, mas hoje parecem algo mais resignados. Há sete anos,
havia nitidamente uma grande repressão; bastava ver os soldados chineses nas ruas, com armas nas mãos e controlando todos os movimentos, não só dos tibetanos, como dos turistas, obrigando estes a visitar os seus restaurantes e museus feitos à pressa.
Nesta última viagem, observei como o ambiente mudou. Já não eram notórias as armas dos militares (pelo menos nos dias que lá passei), parecendo o povo tibetano mais dominado e sem grande esperança. Talvez mais conformados com a situação e cansados de aguardarem o salvador. Também diminuíram os vendedores ambulantes que tanto coloriam as ruas, embora exista agora uma vida tanto ou mais fervilhante, mas, mais organizada, com inúmeros estabelecimentos comerciais, noventa por cento controlado pelos chineses. Subsistem ainda os tibetanos junto ao Templo central, locais próprios de vendas das suas produções, numa tentativa deste povo em sobreviver com a sua cultura e espiritualidade, num ambiente que desde que é controlado pelos chineses, lhes será sempre hostil.
Com o progresso surgiram mais estradas e ruas alcatroadas.
Vi muitos edifícios em construção, aterradoramente aberrantes, não só pelo contraste com a bela e harmoniosa arquitectura tibetana, mas principalmente porque, de qualquer ponto da cidade de Lhasa em que estejamos, sobressai o maravilhoso Mosteiro-Palácio de Potala. Este, marca simbolicamente a diferença entre o passado e o presente e está cada vez mais ameaçado e desfigurado pelo que o rodeia, tal os edifícios ou o crescente comércio chinês e, infelizmente, as muitas casas de “diversão”, com chinesas prontas a divertir, sobretudo, os jovens soldados chineses.
Este livro assente nos Yoga-Sūtras está ligado aos sítios em que passei, porque foi em alguns desses locais que realizei certas experiências espirituais, revelando-se o que devia escrever.
«É um saber só de experiência feito»…
Mesmo quanto às partes relacionadas com o Cosmos e os assuntos científicos, também “viajei” a certos planos de Consciência em que me foi mostrado o Cosmos de forma precisa e explicado o seu mecanismo e as suas transformações. Deste modo, a interpretação dos Yoga-Sūtras sairá do que normalmente se encontra em comentários. Por outro lado, quando neles trabalhava (três a quatro sūtras por dia), sucedia ultrapassá-los largamente, dando-me conta de que havia comentado
vários de uma só vez. Finalmente, há um certo carácter repetitivo, por vezes não só nos comentários, mas no próprio texto em si, que deve entender-se como reforço para a compreensão de temas tão subtis e profundos.
Neste trabalho não me inspirei apenas na filosofia do Yoga, mas brotaram conhecimentos que englobam tanto filosofias, como convicções e realizações próprias, de modo que quase não consigo separá-las, pois a essência de cada uma participa de um Todo ou Unidade. Ao usar os Yoga-Sūtras como base deste trabalho, também foi minha intenção contribuir, de algum modo, para a expansão do conhecimento da filosofia indiana entre nós, pois são parcos os conhecimentos e as traduções
portuguesas.
A versão dos “Sūtras” aqui apresentada resultou da escolha entre uma dezena de traduções clássicas, outras coligidas pelo Dr. Pedro Teixeira da Mota e a sua própria versão, realizada sob orientação de Dr. Satchitānanda Dhar, de Calcutá e, ainda, a minha própria interpretação.
É com enorme gratidão que expresso o meu especial agradecimento à Prof. Margarida Corrêa de Lacerda por toda a sua dedicação e amor e por ter cooperado sempre com entusiástica vontade em todas as minhas obras publicadas. Sem dúvida, foram também as suas maravilhosas narrativas das epopeias indianas que contribuíram mais directamente no meu conhecimento das filosofias orientais. De igual modo, para com o Dr. Pedro Teixeira da Mota a gratidão é grande, pela sua ajuda em
todos os meus trabalhos com grande dedicação e paciência.
Sem eles, a minha obra e missão seria incompreendida…