Quando avalizamos as nossas atitudes, a nossa maneira de estar no mundo, a nossa ideologia, a nossa religião, etc., etc., com recurso a um “fiador paquidérmico”, ainda que o todo-poderoso, estamos, na realidade, somente a mistificar, a querer fazer passar, de uma forma engenhosa, as nossas causas relativamente más-boas pelos desígnios dessa entidade tutelar, e a reeditar, numa curva ulterior da espiral, a cerimónia antropofágica da pretensa divindade à mesa dos escravos onde nos sentamos para pagar antecipadamente, com a nossa própria escravidão, o imposto devido pelo privilégio de ainda não termos sido expulsos da confraria dos escravos-símios de pleno direito, num planeta onde ainda continuamos “minoritários” os que ousamos libertar-nos dos fantasmas que nós próprios criamos para auto-satisfação desse pendor danado, dessa inclinação sarnenta, à escravidão. Efectivamente, quanto mais identificamos o mal-bem relativo em que se move o nosso Ser e a nossa Condição com o Bem absoluto, mais nos fanatizamos e mais facilmente nos predispomos aos mais excessivos extremismos, à adopção de atitudes, as mais desumanas, a, no limite, participar até em monstruosos movimentos de genocídio. Mas como é possível? Porquê? Muito simplesmente por “amor”. E em nome do Bem. Com o mais firmado espírito de “altruísmo” podemos deixar-nos arrastar até estádios de “comunhão” doentia tão intensos que, obnubilada completamente a nossa consciência individual, acabemos por nos transformar em simples instrumentos absolutamente desumanizados de fanática loucura colectiva. «(…) as tendências integrativas do indivíduo são incomparavelmente mais perigosas que as auto-afirmativas.1» «(…): os crimes de violência cometidos por motivos egoístas e pessoais são historicamente insignificantes quando comparados àqueles cometidos ad majorem gloriam Dei, por causa da devoção auto-sacrificante a uma bandeira, a um líder, a uma fé religiosa, ou a uma convicção política.»2
Em nome de Cristo, por exemplo, e com o empenhamento total da hierarquia católica sem margem alguma para alijar responsabilidades, cometeram-se os crimes mais horrendos. Talvez nada tenha havido na Terra de mais infame que a Inquisição católica: – porque não se contentando com a morte das vítimas pelos mais inimagináveis métodos de tortura, não se limitando a assassinar com requintes de malvadez impressionante, ainda condenavam as mais heróicas vítimas – aquelas que resistiam mais corajosamente à infâmia odiosa do carrasco, aquelas que sacrificavam a vida á liberdade, que se imolavam pela liberdade de serem livres, aquelas que preferiam morrer livres a viver como escravos – ao fogo do inferno depois da morte, e, não há palavras, por toda a eternidade. Ora, não se pode imaginar nada de mais absolutamente anti-cristão do que a própria prática da hierarquia católica em determinadas épocas e sobretudo nesse período específico da Inquisição. Mas passaram séculos de civilização europeia. E…
«Ninguém previa, nenhum pessimista se atrevia a imaginar que a Idade da Razão terminaria pela maior disparada emocional da história, (…). Contudo, mais uma vez a besta fora motivada pelos mais nobres ideais, pelo messianismo secular da Sociedade sem Classes e do Reich do Milénio, (…)»3 O holocausto nazi, o “gulag”. «Os expurgos comunistas, tal como a palavra «expurgo» indica, foram vistos como operações de higiene social, destinadas a preparar a humanidade para a idade de ouro da sociedade sem classes. As câmaras de gás e os crematórios trabalharam para o advento de uma versão diferente do milénio.»4 «A propaganda fascista não se incomoda muito em harmonizar a emoção com a razão, (…). A teoria leninista do Socialismo Científico, por outro lado, foi um rebento, em linha de descendência directa, da Idade das Luzes.»5 Como se pode compreender e explicar isto? Pela respectiva identificação com o Bem, simplesmente.
Nem tudo o que acontece de mau no mundo se deve à maldade assumida; a parte maior deve-se mesmo à “bondade”. O mal que as pessoas fazem, que nós fazemos, raramente será feito com espírito de maldade; geralmente é na convicção de se estar a fazer o bem, com “amor”. Os próprios homens que podem carregar no “botão” nuclear também sofrem e amam, e estão convictos de defender o bem, e até possuídos pela ideia do dever de salvar a Humanidade do mal, do mal que é o que a outra parte oposta representa, obviamente. Tudo por “amor”: – à bandeira, à causa, a Deus, etc., etc.. Mas que espécie de “amor” é este? Quando, na exacta medida em que mais se “ama” – A – mais necessariamente se odeia – B – ? Ora, do que se trata é da integração de carácter sistémico ou da auto-transcendência por devoção conducentes ao individualismo de grupo: – quanto mais um indivíduo se identifica com uma causa, uma ideologia, uma religião, etc., mais se despersonaliza e massifica no seio do grupo e mais este se individualiza e diferencia no contexto da sociedade ou de outra estrutura mais vasta. A competitividade individual é transferida para o nível do grupo por efeito de auto-transcendência dos indivíduos, podendo vir a adquirir a dimensão espacial de uma guerra e a intensidade do fanatismo.
O indivíduo assim enfeudado a uma verdade, sempre necessariamente relativa e parcial, que ele ajuda a erigir dogmaticamente em pretensa verdade absoluta, sente-se protegido por uma estrutura conceptual blindada a que está inteiramente acomodado e em ordem à qual submete toda a análise da realidade. Sente-se protegido por uma concepção do mundo que lhe permite explicar tudo com uma facilidade impressionante ainda que em contraposição flagrante à evidência dos factos. E é assim que com infinita candura, com uma ingenuidade desarmante e a convicção do fanatismo, o dogmático nos surpreende frequentemente com argumentos de um teor que bloqueia automaticamente e de imediato toda a hipótese de diálogo, argumentos que, por exemplo, reflectem a sua crença em supostas infalibilidades, argumentos do género de: – isso não é verdade até porque é contrário ao que diz… o Papa, Marx, etc., etc.. O dogmático chega a nem sequer imaginar a possibilidade de que poderia ser diferente, ou até de que alguém possa ser diferente (embora este seja o dogmático do tipo mais estúpido). Enfim, imaginando-se protegido, o dogmático está, no entanto, preso no interior de um santuário-fortaleza cujas muralhas o isolam da realidade. Incapaz de se descentrar da sua “verdade” a que está completamente alienado, o dogmático corta a si mesmo todas as veleidades de diálogo, abate todas as pontes com o exterior, enclausurando-se com os seus confrades nas catacumbas da seita que urdem na recitação da “bíblia” comum.
É assim que, por exemplo, o marxismo-leninismo, como a prática já demonstrou à saciedade, acabou por não desalienar o homem e a sociedade, antes engendrando a sua escravatura ao sistema, tornando-se mesmo o «ópio do povo». O nosso “bem” passa a ser definido pela cúpula do partido que, por “amor”, nos resguarda de todos os perigos de contaminação. Impondo-nos, pela força se necessário, o “bem”, e para nosso “bem”, protegem-nos até contra qualquer veleidade própria de desvio. Acaba por ser uma prática estruturalmente semelhante à de qualquer outra seita eclesial que se tenha assenhoreado do poder político, do também chamado «poder temporal». A prática do “bem”, uma vez absolutizado este, conduz ao extremo de se estar na disposição de eliminar a Humanidade por “amor” à Humanidade. E é assim que o comunista, como qualquer outro dogmático, está tão convencido, tão “religiosamente” convicto, da identidade absoluta entre o seu pensamento e o Bem que fica automaticamente na disposição de disciplinar, de submeter todos os homens às suas concepções, aos seus padrões, até ao último pormenor. E tudo isto em nome do Bem, tudo por “amor”. É a extrema alienação! E, sendo assim, tudo está justificado à partida: – o policiamento do mínimo gesto suspeito, a procura do mínimo pormenor de rebeldia aos padrões institucionalizados, na ânsia de descobrir a dissidência. Depois, a massificação mais evidencia ainda a diferença, a mais elementar que seja, que se torna insuportável pela absolutização do sistema. O sistema domina inexoravelmente impondo a domestificação aos cânones, sobrevalorizando a estabilidade e o imobilismo social.
«Cada cabeça sua sentença», diz um velho ditado português. É um provérbio que geralmente se profere num tom algo irónico. Mas eu aceito-o à letra, e num tom afirmativo, de aprovação. Porque em caso algum uma única cabeça pode sequer conceber, quanto mais determinar, a felicidade, o que cada qual entenda por a sua felicidade, para toda a gente. E, no entanto, é essa prerrogativa que os ideólogos, os doutrinários, os “salvadores”, de todas as épocas reivindicaram na prática para si próprios. Sem que alguma vez o tenham podido conseguir a contento. E aí está o drama do ideólogo, do doutrinário, do “salvador”, drama que tantas vezes se tem transformado em verdadeira tragédia para povos inteiros, vítimas do carácter naturalmente totalitário que assume, necessariamente, a imposição a todos da “felicidade” que uns tantos paranóicos idealizaram com sacrifício e por “amor” à comunidade. Com efeito, é na qualidade de vítimas de tanto “amor” de ideólogos, de doutrinários, de “salvadores”, e de todos os que se lhes escravizam, que tantos seres humanos têm caído objecto de crimes horrendos, de assassínios aos milhões, genocídios de povos inteiros. Tudo por “amor”, para nos libertarem do “mal”, chegando-se ao cúmulo de matar por explícito “amor” à própria vítima exigindo-se-lhe, então, uma atitude de gratidão pelo privilégio de lhe ser garantida a “salvação”, com todos os “pecados” absolvidos, através do homicídio que o “salvador” se prepara para cometer na sua própria pessoa. E nós, uns ingratos, fugimos de tanto “amor”. Os que fogem! Porque para as “maiorias” isto tem sido sempre muito natural. Aliás, isto também só tem podido continuar porque essas “maiorias” acham natural. Afinal, a escravatura só se mantém se a manada dos escravos continuar a reproduzir-se convenientemente. Assim, continuará a haver ideólogos, doutrinários e “salvadores”, enquanto houver escravos à procura de um dono, enquanto houver masoquistas que os aturem, enfim, enquanto houver mercado.
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1 Arthur Koestler – «O Fantasma da Máquina», pág. 272 – Zohar Editores – Rio de Janeiro, 1969.
2 Id. – ib., pág. 273.
3 Id. – ib., pág. 297.
4 Id. – ib., pág. 273
5 Id. – ib., pág. 299
Fernando Pereira Nogueira, autor de Cumprir Portugal, Teoria do Campo-Caminho Unitário (4 volumes) e de O Caminho Está a Nascer em Portugal